“Dilexit te”: Leão XIV e Francisco unidos no amor aos pobres
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
DILEXI TE
DO SANTO PADRE
LEÃO XIV
SOBRE O AMOR PARA COM OS POBRES
1. «Eu te amei» (Ap 3, 9), diz o Senhor a uma comunidade cristã que, ao contrário de outras, não tinha qualquer relevância ou recurso e estava exposta à violência e ao desprezo: «tens pouca força, mas […] farei que […] venham prostrar-se a teus pés» (Ap 3, 8-9). Este texto recorda as palavras do cântico de Maria: «Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 52-53).
2. A declaração de amor do Apocalipse remete para o mistério insondável que foi aprofundado pelo Papa Francisco na Encíclica Dilexit nos sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus. Nela, admirámos o modo como Jesus se identifica «com os últimos da sociedade» e como, através do seu amor doado até ao fim, mostra a dignidade de cada ser humano, sobretudo quando é «mais fraco, mísero e sofredor». [1] Contemplar o amor de Cristo «ajuda-nos a prestar mais atenção ao sofrimento e às necessidades dos outros, e torna-nos suficientemente fortes para participar na sua obra de libertação, como instrumentos de difusão do seu amor». [2]
3. Por esta razão, em continuidade com a Encíclica Dilexit nos, o Papa Francisco, nos últimos meses da sua vida, estava a preparar uma Exortação Apostólica sobre o cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres, intitulada Dilexi te, imaginando Cristo a dirigir-se a cada um deles dizendo: Tens pouca força, pouco poder, mas «Eu te amei» ( Ap 3, 9). Ao receber como herança este projeto, sinto-me feliz ao assumi-lo como meu – acrescentando algumas reflexões – e ao apresentá-lo no início do meu pontificado, partilhando o desejo do meu amado Predecessor de que todos os cristãos possam perceber a forte ligação existente entre o amor de Cristo e o seu chamamento a tornarmo-nos próximos dos pobres. Na verdade, também eu considero necessário insistir neste caminho de santificação, porque no «apelo a reconhecê-Lo nos pobres e atribulados, revela-se o próprio coração de Cristo, os seus sentimentos e as suas opções mais profundas, com os quais se procura configurar todo o santo». [3]
CAPÍTULO I
ALGUMAS PALAVRAS INDISPENSÁVEIS
4. Os discípulos de Jesus criticaram a mulher que derramou um perfume muito precioso sobre a sua cabeça: «Para quê este desperdício?» – diziam eles – «Podia vender-se por bom preço e dar-se o dinheiro aos pobres». Mas o Senhor disse-lhes: «Pobres, sempre os tereis convosco; mas a mim nem sempre me tereis» (Mt 26, 8-9.11). Aquela mulher tinha compreendido que Jesus era o Messias humilde e sofredor sobre quem derramar o seu amor: que consolo aquele unguento sobre a cabeça que, dali a poucos dias, seria atormentada pelos espinhos! Era um pequeno gesto, mas quem sofre sabe o quanto é grande mesmo um pequeno sinal de afeto e quanto alívio pode trazer. Jesus compreende isso e confirma a sua perenidade: «Em qualquer parte do mundo onde este Evangelho for anunciado, há de também narrar-se, em sua memória, o que ela acaba de fazer» (Mt 26, 13). A simplicidade daquele gesto revela algo grandioso. Nenhuma expressão de carinho, nem mesmo a menor delas, será esquecida, especialmente se dirigida a quem se encontra na dor, sozinho, necessitado, como estava o Senhor naquela hora.
5. É precisamente nesta perspectiva que o afeto pelo Senhor se une ao afeto pelos pobres. Aquele Jesus que diz «Pobres, sempre os tereis convosco» (Mt 26, 11), expressa igual sentido quando promete aos discípulos: «Sabei que Eu estarei sempre convosco» (Mt 28, 20). Ao mesmo tempo, vêm-nos à mente aquelas palavras do Senhor: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Não estamos no horizonte da beneficência, mas no da Revelação: o contato com quem não tem poder nem grandeza é um modo fundamental de encontro com o Senhor da história. Nos pobres, Ele ainda tem algo a dizer-nos.
São Francisco
6. O Papa Francisco, ao recordar a escolha do próprio nome, contou que, após a sua eleição, um Cardeal amigo abraçou-o, beijou-o e disse-lhe: «Não te esqueças dos pobres!». [4] Trata-se da mesma recomendação feita pelas autoridades da Igreja a São Paulo quando ele subiu a Jerusalém para verificar a sua missão (cf. Gl 2, 1-10). O Apóstolo pôde afirmar anos mais tarde: foi «o que procurei fazer com o maior empenho» ( Gl 2, 10). Trata-se também da escolha de São Francisco de Assis: no leproso, foi o próprio Cristo que o abraçou, transformando a sua vida. A figura luminosa do Poverello jamais deixará de nos inspirar.
7. Há oito séculos, foi ele que provocou um renascimento evangélico nos cristãos e na sociedade do seu tempo. O jovem Francisco, anteriormente rico e presunçoso, renasceu a partir do impacto com a realidade daqueles que são expulsos da convivência. O impulso dado por ele não cessa de mover os corações dos fiéis e de muitos não crentes e «mudou a história». [5] Segundo as palavras de São Paulo VI, o próprio Concílio Vaticano II segue nesta direção: «Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio». [6] Estou convencido de que a opção preferencial pelos pobres gera uma renovação extraordinária tanto na Igreja como na sociedade, quando somos capazes de nos libertar da autorreferencialidade e conseguimos ouvir o seu clamor.
O clamor dos pobres
8. A propósito, na Sagrada Escritura há um texto que deve ser tomado sempre como ponto de partida. Trata-se da revelação de Deus a Moisés junto à sarça ardente: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar […] E agora, vai; Eu te envio» ( Ex 3, 7-8.10). [7] Deus mostra-se solícito para com as necessidades dos pobres: «Clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» ( Jz 3, 15). Portanto, ao ouvir o clamor do pobre, somos chamados a identificar-nos com o coração de Deus, que está atento às necessidades dos seus filhos, especialmente dos mais necessitados. Se permanecêssemos, porém, indiferentes a esse clamor, o pobre clamaria ao Senhor contra nós e isso tornar-se-ia para nós um pecado (cf. Dt 15, 9) e, deste modo, afastar-nos-íamos do próprio coração de Deus.
9. A condição dos pobres representa um grito que, na história da humanidade, interpela constantemente a nossa vida, as nossas sociedades, os sistemas políticos e económicos e, sobretudo, a Igreja. No rosto ferido dos pobres encontramos impresso o sofrimento dos inocentes e, portanto, o próprio sofrimento de Cristo. Ao mesmo tempo, deveríamos falar, e talvez de modo mais acertado, dos inúmeros rostos dos pobres e da pobreza, uma vez que se trata de um fenómeno multifacetado; na verdade, existem muitas formas de pobreza: a daqueles que não têm meios de subsistência material, a pobreza de quem é marginalizado socialmente e não possui instrumentos para dar voz à sua dignidade e capacidades, a pobreza moral e espiritual, a pobreza cultural, aquela de quem se encontra em condições de fraqueza ou fragilidade seja pessoal seja social, a pobreza de quem não tem direitos, nem lugar, nem liberdade.
10. Neste sentido, pode dizer-se que o compromisso em favor dos pobres e pela erradicação das causas sociais e estruturais da pobreza, embora tenha adquirido importância nas últimas décadas, ainda continua insuficiente; até porque as sociedades em que vivemos privilegiam, com frequência, linhas políticas e padrões de vida marcados por numerosas desigualdades e, por isso, às antigas formas de pobreza que evidenciámos e se procuram combater, acrescentam-se outras novas, por vezes mais subtis e perigosas. Deste ponto de vista, é de louvar que as Nações Unidas tenham colocado a erradicação da pobreza como um dos objetivos do Milénio.
11. Ao compromisso concreto com os pobres ocorre associar também uma mudança de mentalidades que tenha incidências culturais. Efetivamente, a ilusão de uma felicidade que deriva de uma vida confortável leva muitas pessoas a ter uma visão da existência centrada na acumulação de riquezas e no sucesso social a todo o custo, a ser alcançado mesmo explorando os outros e aproveitando ideais sociais e sistemas político-económicos injustos, favoráveis aos mais fortes. Assim, num mundo onde os pobres são cada vez mais numerosos, vemos paradoxalmente crescer algumas elites ricas, que vivem numa bolha de condições demasiado confortáveis e luxuosas, quase num mundo à parte em relação às pessoas comuns. Isto significa que persiste – por vezes bem disfarçada – uma cultura que descarta os outros sem sequer se aperceber, tolerando com indiferença que milhões de pessoas morram à fome ou sobrevivam em condições indignas do ser humano. Alguns anos atrás, a foto de uma criança de bruços, sem vida, numa praia do Mediterrâneo provocou grande choque; infelizmente, à parte de alguma momentânea comoção, acontecimentos semelhantes estão a tornar-se cada vez mais irrelevantes, como se fossem notícias secundárias.
12. Não devemos baixar a guarda diante da pobreza. Preocupam-nos, de modo particular, as graves condições em que vivem muitíssimas pessoas, devido à escassez de alimentos e água potável. Todos os dias morrem milhares de pessoas por causas relacionadas com a desnutrição. Mesmo nos países ricos, as estimativas relativas ao número de pobres não são menos preocupantes. Na Europa, há cada vez mais famílias que não conseguem chegar ao fim do mês. Em geral, nota-se que as diferentes manifestações da pobreza aumentaram. Ela já não se apresenta como uma condição única e homogénea, mas manifesta-se em múltiplas formas de empobrecimento económico e social, refletindo o fenómeno de crescentes desigualdades, mesmo em contextos geralmente prósperos. Recordemos que «duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos. E, todavia, também entre elas, encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das suas famílias». [8] Embora em alguns países se observem mudanças importantes, «a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra», [9] especialmente se pensarmos nas mulheres mais pobres.
Preconceitos ideológicos
13. Para além dos dados – que por vezes são “interpretados” tentando convencer que a situação dos pobres não é tão grave assim –, o quadro geral é bastante claro: «Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral. Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim nascem novas pobrezas. Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza sempre se analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto». [10] Todavia, para além das situações específicas e conjunturais, num documento da União Europeia de 1984, afirmava-se: «considera-se pessoas pobres os indivíduos, as famílias e os grupos de pessoas cujos recursos (materiais, culturais e sociais) são de tal modo débeis que os excluem de um tipo de vida minimamente aceitável no Estado-membro em que vivem». [11] Contudo, se reconhecemos que todos os seres humanos têm a mesma dignidade, independentemente do local de nascimento, não se podem ignorar as grandes diferenças que existem entre países e regiões.
14. Os pobres não existem por acaso ou por um cego e amargo destino. Muito menos a pobreza é uma escolha, para a maioria deles. No entanto, ainda há quem ouse afirmá-lo, demonstrando cegueira e crueldade. Entre os pobres há também, obviamente, aqueles que não querem trabalhar, talvez porque os seus antepassados, que trabalharam toda a vida, morreram pobres. Mas há muitos homens e mulheres que trabalham de manhã à noite, recolhendo papelão, por exemplo, ou realizando outras atividades semelhantes, embora saibam que este esforço servirá apenas para sobreviver e nunca para melhorar verdadeiramente as suas vidas. Não podemos dizer que a maioria dos pobres estão nessa situação porque não obtiveram “méritos”, de acordo com a falsa visão da meritocracia, segundo a qual parece que só têm mérito aqueles que tiveram sucesso na vida.
15. Também os cristãos, em muitas ocasiões, se deixam contagiar por atitudes marcadas por ideologias mundanas ou por orientações políticas e económicas que levam a injustas generalizações e a conclusões enganadoras. Observar que o exercício da caridade é desprezado ou ridicularizado, como se fosse uma fixação somente de alguns e não o núcleo incandescente da missão eclesial, faz-me pensar que é preciso ler novamente o Evangelho, para não se correr o risco de o substituir pela mentalidade mundana. Se não quisermos sair da corrente viva da Igreja que brota do Evangelho e fecunda cada momento histórico, não podemos esquecer os pobres.
CAPÍTULO II
DEUS ESCOLHE OS POBRES
A opção pelos pobres
16. Deus é amor misericordioso e o seu projeto de amor, que se estende e realiza na história, é primeiramente o seu descer e vir estar entre nós para nos libertar da escravidão, dos medos, do pecado e do poder da morte. Com um olhar misericordioso e o coração cheio de amor, Ele dirigiu-se às suas criaturas, preocupando-se com a sua condição humana e, portanto, com a sua pobreza. Precisamente para partilhar os limites e as fraquezas da nossa natureza humana, Ele mesmo se fez pobre, nasceu segundo a carne como nós e reconhecemo-lo na pequenez de uma criança recostada numa manjedoura e na extrema humilhação da cruz, onde partilhou a nossa radical pobreza, que é a morte. Por isso, compreende-se bem por que se pode falar, também teologicamente, sobre uma opção preferencial de Deus pelos pobres, uma expressão que surgiu no contexto do continente latino-americano, em particular na Assembleia de Puebla, mas que foi bem integrada no sucessivo Magistério da Igreja. [12] Esta “preferência” nunca diz respeito a um exclusivismo ou a uma discriminação em relação a outros grupos, que em Deus seria impossível; ela pretende sublinhar o agir de Deus que, por compaixão, se dirige à pobreza e à fraqueza da humanidade inteira e que, querendo inaugurar um Reino de justiça, fraternidade e solidariedade, tem particularmente a peito aqueles que são discriminados e oprimidos, pedindo-nos também a nós, sua Igreja, uma decidida e radical posição em favor dos mais fracos.
17. Nesta perspectiva, compreendem-se as numerosas páginas do Antigo Testamento, nas quais Deus é apresentado como amigo e libertador dos pobres, Aquele que escuta o grito do pobre e intervém para o libertar (cf. Sl 34, 7). Deus, refúgio do pobre, por meio dos profetas – recordemos de modo particular Amós e Isaías – denuncia as iniquidades contra os mais fracos e exorta Israel a renovar o culto a partir de dentro, porque não se pode rezar nem oferecer sacrifícios, quando ao mesmo tempo se oprimem os mais fracos e pobres. Desde o seu início, a Sagrada Escritura manifesta com grande intensidade o amor de Deus através da proteção dos mais fracos e dos menos favorecidos, a tal ponto que, em relação a eles, se poderia falar de uma espécie de “fraqueza” de Deus: «No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres […]. Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres». [13]
Jesus, o Messias pobre
18. Toda a história do Antigo Testamento sobre a predileção de Deus pelos pobres e o desejo divino de ouvir o seu clamor – que evoquei brevemente – encontra em Jesus de Nazaré a sua plena realização. [14] Na sua encarnação, Ele «esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem» ( Fl 2, 7), nesta condição realizou a nossa salvação. Trata-se de uma pobreza radical, fundada na sua missão de revelar a verdadeira face do amor divino (cf. Jo 1, 18; 1 Jo 4, 9). Por isso, São Paulo pode afirmar com uma das suas maravilhosas sínteses: «Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» ( 2 Cor 8, 9).
19. Com efeito, o Evangelho mostra que esta pobreza abrangia todos os aspectos da sua vida. Desde a sua entrada no mundo, Jesus experimentou as dificuldades relacionadas com a rejeição. O evangelista Lucas, narrando a chegada a Belém de José e Maria, já próxima do momento do parto, observa com pena «não haver lugar para eles na hospedaria» (Lc 2, 7). Jesus nasceu em condições humildes: logo após o nascimento, foi recostado numa manjedoura, e, pouco tempo depois, os seus pais fugiram para o Egito para o salvar da morte (cf. Mt 2, 13-15). No início da sua vida pública, foi expulso de Nazaré depois de ter anunciado na sinagoga que se cumpria n’Ele o ano da graça no qual os pobres se rejubilam (cf. Lc 4, 14-30). Não houve um lugar acolhedor nem sequer no momento de sua morte: a fim de ser crucificado, levaram-no para fora de Jerusalém (cf. Mc 15, 22). É nesta condição que se pode resumir claramente a pobreza de Jesus. Trata-se da mesma exclusão que caracteriza a definição dos pobres: eles são os excluídos da sociedade. Jesus é a revelação deste privilegium pauperum. Ele apresenta-se ao mundo não só como Messias pobre, mas também como Messias dos pobres e para os pobres.
20. Existem alguns indícios a propósito da condição social de Jesus. Em primeiro lugar, Ele realiza o ofício de artesão ou carpinteiro, téktōn (cf. Mc 6, 3). Trata-se de uma categoria de pessoas que vivem do seu trabalho manual. Não possuindo terrenos, eram considerados inferiores em relação aos agricultores. Quando o Menino Jesus é apresentado no Templo, por José e Maria, os seus pais ofereceram um par de rolas ou de pombas (cf. Lc 2, 22-24), que segundo as prescrições do Livro do Levítico (cf. 12, 8) constituía a oferta dos pobres. Um episódio evangélico bastante significativo é aquele que nos conta como Jesus e os seus discípulos colhiam espigas para se alimentarem, enquanto atravessavam os campos (cf. Mc 2, 23-28) e isto – respigar os campos – era permitido somente a quem era pobre. Além disso, o próprio Jesus diz de si mesmo: «As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça» (Mt 8, 20; Lc 9, 58). Na verdade, Ele é um mestre itinerante, cuja pobreza e precaridade são sinais do vínculo com o Pai e são pedidas também a quem deseja segui-lo no caminho do discipulado, precisamente para que a renúncia aos bens, às riquezas e às seguranças deste mundo seja um sinal visível do ter-se confiado a Deus e à sua providência.
21. No início do seu ministério público, Jesus apresenta-se na sinagoga de Nazaré lendo o livro de Isaías e aplicando a si mesmo a palavra do profeta: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18; cf. Is 61, 1). Ele manifesta-se, portanto, como Aquele que, no hoje da história, vem realizar a proximidade amorosa de Deus, que em primeiro lugar é obra de libertação para quem está prisioneiro do mal, para os fracos e os pobres. Na verdade, os sinais que acompanham a pregação de Jesus são manifestações de amor e de compaixão com as quais Deus olha para os doentes, os pobres e os pecadores que, em virtude da sua condição, eram marginalizados na sociedade, inclusivamente pela religião; Ele abre os olhos aos cegos, cura os leprosos, ressuscita os mortos e anuncia aos pobres a boa nova: Deus fez-se próximo, Deus ama-vos (cf. Lc 7, 22). Isto explica a razão pela qual Ele proclama: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6, 20). Efetivamente, Deus mostra predileção pelos pobres: a eles primeiramente se dirige a palavra de esperança e libertação do Senhor e por isso ninguém, apesar da condição de pobreza ou fraqueza, deve sentir-se abandonado. E a Igreja, se deseja ser de Cristo, deve ser Igreja das Bem-aventuranças, Igreja que dá vez aos pequeninos e caminha pobre com os pobres, lugar onde os pobres têm um espaço privilegiado (cf. Tg 2, 2-4).
22. Incapazes de se prover do necessário para viver, os indigentes e os enfermos eram frequentemente obrigados a mendigar. A isso somava-se o peso da vergonha social, alimentada pela convicção de que a doença e a pobreza estavam ligadas a algum pecado pessoal. Jesus combateu com firmeza aquele modo de pensar, afirmando: «o vosso Pai que está no Céu faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (Mt 5, 45). E, inclusive, inverteu mesmo completamente tal concepção, como está bem exemplificado na parábola do rico avarento e do pobre Lázaro: «Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado» (Lc 16, 25).
23. Compreende-se, então, que «deriva da nossa fé em Cristo, que se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade». [15] Muitas vezes pergunto-me, quando há tanta clareza nas Sagradas Escrituras a respeito dos pobres, por que razão muitos continuam a pensar que podem deixar de prestar atenção aos pobres. Por enquanto, porém, permaneçamos no âmbito bíblico e procuremos refletir sobre a nossa relação com os últimos da sociedade e sobre o lugar fundamental que eles ocupam no povo de Deus.
A misericórdia para com os pobres na Bíblia
24. O Apóstolo João escreve: «Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20). Do mesmo modo, na sua resposta ao doutor da lei, Jesus retoma dois antigos mandamentos: «Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6, 5) e «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19, 18), unindo-os num único mandamento. O evangelista Marcos reproduz a resposta de Jesus nestes termos: «O primeiro é: Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes» (Mc 12, 29-31).
25. A passagem do Levítico citada acima exorta a honrar o próprio compatriota, enquanto noutros textos encontramos um ensinamento que convida ao respeito – ou mesmo ao amor – também pelo inimigo: «Quando encontrares um boi do teu inimigo ou o seu jumento, desgarrados, tu lhos levarás de volta. Quando vires um jumento daquele que te odeia caído debaixo da sua carga, não o abandones, mas presta-lhe ajuda» (Ex 23, 4-5). Isso deixa transparecer o valor intrínseco do respeito pela pessoa: seja quem for que se encontre em dificuldade, mesmo o inimigo, merece sempre ser socorrido.
26. É inegável que o primado de Deus no ensinamento de Jesus é acompanhado por outro princípio fundamental, segundo o qual não se pode amar a Deus sem estender o próprio amor aos pobres. O amor ao próximo é a prova tangível da autenticidade do amor a Deus, como atesta o Apóstolo João: «A Deus nunca ninguém o viu; se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós. […] Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele» (1 Jo 4, 12.16). São dois amores distintos, mas inseparáveis. Mesmo nos casos em que a relação com Deus não é explícita, o próprio Senhor nos ensina que qualquer ação de amor pelo próximo é, em algum modo, um reflexo da caridade divina: «Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).
27. Por esta razão, recomendam-se as obras de misericórdia, qual sinal da autenticidade do culto que, ao louvar a Deus, tem por missão abrir-nos à transformação que o Espírito pode realizar em nós, para que todos nos tornemos imagem de Cristo e da sua misericórdia para com os mais fracos. Nesse sentido, a relação com o Senhor, que se expressa no culto, pretende também libertar-nos do risco de viver as nossas relações segundo a lógica do cálculo e das vantagens, abrindo-nos à gratuidade que existe entre aqueles que se amam e que, por isso, partilham tudo. A este respeito, Jesus aconselha: «Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz por eles não terem com que te retribuir» (Lc 14, 12-14).
28. O apelo do Senhor à misericórdia para com os pobres encontrou a sua máxima expressão na grande parábola do juízo final (cf. Mt 25, 31-46), que é também uma representação gráfica da bem-aventurança dos misericordiosos. Ali, o Senhor ofereceu-nos a chave para alcançar a nossa plenitude, porque «se andamos à procura da santidade que agrada a Deus, neste texto encontramos precisamente uma regra de comportamento com base na qual seremos julgados». [16] As palavras fortes e claras do Evangelho devem ser vividas «sem comentários, especulações e desculpas que lhes tirem força. O Senhor deixou-nos bem claro que a santidade não se pode compreender nem viver prescindindo destas suas exigências». [17]
29. O programa de caridade na primeira comunidade cristã não derivava de análises ou projetos, mas diretamente do exemplo de Jesus, das próprias palavras do Evangelho. A Carta de São Tiago dedica amplo espaço ao problema da relação entre ricos e pobres, lançando aos fiéis dois apelos muito fortes que questionam a sua fé: «De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta» (Tg 2, 14-17).
30. «O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem servirá de testemunho contra vós e devorará a vossa carne como o fogo. Entesourastes, afinal, para os vossos últimos dias! Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança!» (Tg 5, 3-5). Que força têm estas palavras, mesmo quando preferimos fazer-nos de surdos! Na Primeira Carta de São João, encontramos um apelo semelhante: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17).
31. O que diz a Palavra revelada «é uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja sobre estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar a assumi-los com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão simples? As elaborações conceituais hão de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos dela». [18]
32. Por outro lado, um claro exemplo eclesial de partilha dos bens e de atenção à pobreza encontramo-lo na vida quotidiana e no estilo da primeira comunidade cristã. Podemos recordar, em particular, o modo como foi resolvida a questão da diária distribuição de auxílios às viúvas (cf. Act 6, 1-6). Era um problema difícil, até porque algumas destas viúvas, provenientes de outros países, por vezes eram preteridas por serem estrangeiras. Com efeito, o episódio narrado nos Atos dos Apóstolos põe em evidência um certo descontentamento da parte dos helenistas, judeus de cultura grega. Os Apóstolos respondem não com um qualquer discurso abstrato e, ao colocar no centro a caridade para com todos, reorganizam a assistência às viúvas, pedindo à Comunidade que procurasse pessoas sábias e estimadas a quem confiar o serviço das mesas, enquanto eles se ocupam da pregação da Palavra.
33. Quando Paulo foi a Jerusalém para consultar os Apóstolos, a fim de «não correr ou ter corrido em vão» (Gl 2, 2), foi-lhe pedido que não se esquecesse dos pobres (cf. Gl 2, 10). Ele, então, organizou diversas coletas para ajudar as comunidades pobres. Entre as motivações que oferece para tal gesto, merece destaque a seguinte: «Deus ama quem dá com alegria» (2 Cor 9, 7). Para aqueles de entre nós pouco inclinados a gestos gratuitos sem qualquer interesse, a Palavra de Deus indica que a generosidade em favor dos pobres é um verdadeiro bem para quem a pratica: efetivamente, ao agir assim somos amados por Deus de maneira especial. Na verdade, as promessas bíblicas dirigidas àqueles que dão com generosidade são muitas: «Quem dá ao pobre empresta ao Senhor, e Ele lhe retribuirá o benefício» (Pr 19, 17); «Dai e ser-vos-á dado: […] A medida que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 38); «Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se» (Is58, 8). Os primeiros cristãos estavam convencidos de tudo isto.
34. A vida das primeiras comunidades eclesiais, que chegou até nós como Palavra revelada no cânone bíblico, é-nos oferecida como exemplo a imitar e como testemunho da fé que opera através da caridade, permanecendo como admoestação perene para as gerações futuras. Ao longo dos séculos, estas páginas têm incentivado o coração dos cristãos a amar e realizar obras de caridade, como sementes fecundas que não cessam de produzir frutos.
CAPÍTULO III
UMA IGREJA PARA OS POBRES
35. Três dias após a sua eleição, o meu Predecessor manifestou aos representantes dos meios de comunicação social o anseio de que fosse mais claramente presente na Igreja o cuidado e a atenção aos pobres: «Ah, como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres!». [19]
36. Este desejo espelha a consciência de que a Igreja «reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e intenta servir neles a Cristo». [20] Com efeito, tendo sido chamada a configurar-se com os últimos, nela «não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima [...]. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres». [21] A este respeito, temos abundantes testemunhos ao longo da história quase bimilenar dos discípulos de Jesus. [22]
A verdadeira riqueza da Igreja
37. São Paulo refere que entre os fiéis da nascente comunidade cristã não havia «muitos sábios, nem muitos poderosos, nem muitos nobres» (1 Cor1, 26). Entretanto, apesar da própria pobreza, os primeiros cristãos têm a clara consciência da necessidade de acudir àqueles que passam maiores privações. Já nos alvores do cristianismo, os Apóstolos impõem as mãos sobre sete homens escolhidos pela comunidade e, em certo grau, integram-nos no próprio ministério, instituindo-os para o serviço – tradução da palavra diakonía em grego – dos mais pobres (cf. Act 6, 1-5). É significativo que o primeiro discípulo a dar testemunho da sua fé em Cristo com o derramamento do próprio sangue seja Santo Estêvão, que fazia parte deste grupo. Nele se unem o testemunho de vida na atenção aos necessitados e o martírio.
38. Pouco mais de dois séculos depois, um outro diácono manifestará a sua adesão a Jesus Cristo de modo semelhante, unindo na sua vida o serviço dos pobres e o martírio: São Lourenço. [23] A partir dos textos de Santo Ambrósio, vemos como Lourenço, diácono em Roma no pontificado do Papa Sixto II, ao ser obrigado pelas autoridades romanas a entregar os tesouros da Igreja, «trouxe consigo, no dia seguinte, os pobres. Quando lhe perguntaram onde estavam os tesouros que prometera, mostrou os pobres, dizendo: “Estes são os tesouros da Igreja”». [24] Ao narrar este episódio, Ambrósio pergunta: «Que melhores tesouros teria Cristo do que aqueles nos quais Ele mesmo disse que estava?». [25] E, recordando que os ministros da Igreja não devem jamais trascurar o cuidado dos pobres e, menos ainda, acumular bens em benefício próprio, afirma: «É necessário que cada um de nós cumpra esta obrigação com fé sincera e perspicaz providência. Sem dúvida, se alguém desvia alguma coisa para utilidade própria, isto é crime; mas, se o dá aos pobres, se resgata o cativo, isto é misericórdia». [26]
Os Padres da Igreja e os pobres
39. Desde os primeiros séculos, os Padres da Igreja reconheceram no pobre um acesso privilegiado a Deus, um modo especial para O encontrar. A caridade para com os necessitados não era compreendida como simples virtude moral, mas como expressão concreta da fé no Verbo encarnado. A comunidade dos fiéis, sustentada pela força do Espírito Santo, encontra-se enraizada na proximidade aos pobres, que nela não são um apêndice, mas parte essencial do seu Corpo vivo. Santo Inácio de Antioquia, por exemplo, estando a caminho do próprio martírio, exortava os fiéis da comunidade de Esmirna a não descuidar o dever da caridade para com os mais necessitados, alertando-os a não proceder como os que se opunham a Deus: «Considerai aqueles que têm opinião diferente sobre a graça de Jesus Cristo, que veio até nós: como eles se opõe ao pensamento de Deus! Não se preocupam com o amor, nem com a viúva, nem com o órfão, nem com o oprimido, nem com o prisioneiro ou liberto, nem com o faminto ou sedento». [27] O bispo de Esmirna, Policarpo, recomendava precisamente aos ministros da Igreja o cuidado dos pobres: «Os presbíteros também sejam compassivos, misericordiosos para com todos. Tragam de volta os desgarrados, visitem todos os doentes, não descuidem a viúva, o órfão e o pobre, mas sejam sempre solícitos no bem diante de Deus e dos homens». [28] A partir destes dois testemunhos, constatamos que a Igreja aparece como mãe dos pobres, lugar de acolhimento e justiça.
40. São Justino, por sua vez, na sua primeira Apologia, dirigida ao Imperador Adriano, ao Senado e ao povo romano, explicava-lhes que os cristãos levavam aos necessitados tudo o que podiam, porque viam neles irmãos em Cristo. Ao escrever sobre a assembleia de oração no primeiro dia da semana, destaca que, no centro da liturgia cristã, não se podem separar o culto a Deus da atenção aos pobres. Com efeito, num determinado momento da celebração «os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme a sua livre vontade, dão o que bem lhes parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por enfermidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o provisor de todos os que se encontram indigentes». [29] Assim, testemunha-se que a Igreja nascente não separava o crer do agir social: a fé que não vinha acompanhada do testemunho das obras, como tinha ensinado São Tiago, era considerada morta (cf. Tg 2, 17).
São João Crisóstomo
41. Entre os Padres orientais, talvez o mais ardoroso pregador da justiça social seja São João Crisóstomo, Arcebispo de Constantinopla na passagem do século IV ao século V. Nas suas homilias, exorta os fiéis a reconhecer Cristo nos necessitados: «Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez. [...] No templo o Corpo de Cristo não precisa de mantos, mas de almas puras; mas na pessoa dos pobres, Ele precisa de todo o nosso cuidado. Aprendamos, portanto, a refletir e a honrar a Cristo como Ele quer. Quando pretendemos honrar alguém, devemos prestar-lhe a honra que ele prefere e não a que mais nos agrada [...]. Assim deves também tu prestar-Lhe aquela honra que Ele mesmo ordenou, distribuindo pelos pobres as tuas riquezas. Deus não precisa de vasos de ouro, mas de almas de ouro». [30] Afirmando com clareza meridiana que, se os fiéis não encontram Cristo nos pobres à sua porta, tampouco serão capazes de prestar-Lhe culto no altar, prossegue: «De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra». [31] Entendia a Eucaristia, portanto, também como uma expressão sacramental da caridade e da justiça que a precediam, a acompanhavam e deveriam dar continuidade a ela no amor e na atenção aos pobres.
42. Sendo assim, a caridade não é uma via opcional, mas o critério do verdadeiro culto. Crisóstomo denunciava com veemência o luxo exacerbado, que convivia com a indiferença em relação aos pobres. A atenção que lhes é devida, mais do que mera exigência social, é condição de salvação, o que atribui à riqueza injusta um peso de condenação: «Faz muito frio e o pobre jaz em farrapos, moribundo enregelado, rangendo os dentes, com aspecto e veste que te deviam comover. Tu, contudo, aquecido e ébrio passas adiante. E como queres que Deus te livre da infelicidade? [...] Muitas vezes a um cadáver insensível, que já não percebe a honra, ornas com muitas vestes variegadas e douradas. Todavia desprezas aquele que sente dor, é dilacerado, torturado, atormentado pela fome e o frio, e dás mais valor à vanglória que ao temor de Deus». [32] Este profundo senso de justiça social leva-o a afirmar que «não dar aos pobres é roubá-los, é defraudar a vida deles, pois a eles pertence o que possuímos». [33]
Santo Agostinho
43. Agostinho teve como seu mestre espiritual Santo Ambrósio, que insistia na exigência ética de partilhar os bens: «Não é de tua propriedade aquilo que dás ao pobre; é dele. Porque tu te apropriaste do que foi dado para uso comum». [34] Para o Bispo de Milão, a esmola é justiça restabelecida, não um gesto paternalista. Nas suas pregações, a misericórdia assume um caráter profético: ela denuncia as estruturas de acúmulo e reafirma a comunhão como vocação eclesial.
44. Formado nesta tradição, o santo Bispo de Hipona ensinou por sua vez o amor preferencial pelos pobres. Pastor vigilante e teólogo de rara clarividência, ele compreendeu que a verdadeira comunhão eclesial se expressa também na comunhão dos bens. No seu Comentário aos Salmos, recorda que os verdadeiros cristãos não deixam de lado o amor aos mais necessitados: «atendeis os vossos irmãos, se precisam de alguma coisa; dais, se Cristo está em vós, até aos estranhos». [35] Esta partilha dos bens brota, portanto, da caridade teologal e tem como fim último o amor a Cristo. Para Agostinho, o pobre não é apenas alguém a quem se presta auxílio, mas é presença sacramental do Senhor.
45. O Doutor da Graça via no cuidado aos pobres uma prova concreta da sinceridade da fé. Aquele que diz amar a Deus e não se compadece dos necessitados, mente (cf. 1Jo 4, 20). Comentando o encontro de Jesus com o jovem rico, e o “tesouro no Céu” que está reservado a quem dá os seus bens aos pobres (cf. Mt 19, 21), Agostinho coloca na boca do Senhor as seguintes palavras: «Recebi terra e darei o Céu. Recebi coisas temporais e darei em troca bens eternos. Recebi pão, darei a vida. [...] Recebi hospedagem e darei uma casa. Fui visitado na doença e darei a saúde. Fui visitado na prisão e darei a liberdade. O pão que foi dado aos meus pobres foi consumido; o pão que eu darei restaura as forças, sem nunca acabar». [36] O Altíssimo não se deixa vencer em generosidade por aqueles que O servem nos mais necessitados: quanto maior o amor aos pobres, maior a recompensa da parte de Deus.
46. Este olhar cristocêntrico e profundamente eclesial leva a sustentar que as ofertas, quando nascidas do amor, não aliviam apenas a necessidade do irmão, mas purificam também o coração de quem as dá e está disposto a uma mudança: «As esmolas, com efeito, podem servir-te para resgatar os pecados da vida passada, se mudares de vida». [37] Elas são, por assim dizer, o caminho ordinário da conversão de quem deseja seguir a Cristo com coração indiviso.
47. Numa Igreja que reconhece nos pobres o rosto de Cristo e nos bens o instrumento da caridade, o pensamento agostiniano permanece uma luz segura. Hoje, a fidelidade aos ensinamentos de Agostinho exige não só o estudo de suas obras, mas a predisposição para viver com radicalidade o seu apelo à conversão que inclui necessariamente o serviço da caridade.
48. Muitos outros Padres da Igreja, do Oriente e do Ocidente, se pronunciaram sobre a primazia da atenção aos pobres na vida e missão de cada fiel cristão. Sob este aspecto, em resumo, pode afirmar-se que a teologia patrística foi prática, apontando para uma Igreja pobre e para os pobres, recordando que o Evangelho só é bem anunciado quando leva a tocar a carne dos últimos, e alertando que o rigor doutrinal sem misericórdia é palavra vazia.
Cuidar dos enfermos
49. A compaixão cristã manifestou-se de modo peculiar no cuidado com os doentes e sofredores. A partir dos sinais presentes no ministério público de Jesus – que curava cegos, leprosos, paralíticos –, a Igreja entende ser parte importante da sua missão o cuidado dos enfermos, nos quais com facilidade reconhece o Senhor crucificado. São Cipriano, durante uma peste na cidade de Cartago, onde era Bispo, recordava aos cristãos a importância do cuidado com os doentes: «esta epidemia que parece tão horrível e funesta põe à prova a justiça de cada um e experimenta o espírito dos homens, verificando se os sãos servem aos enfermos, se os parentes se amam sinceramente, se os senhores têm piedade dos servos enfermos, se os médicos não abandonam os doentes que imploram». [38] A tradição cristã de visitar os doentes, de lavar as suas feridas, de confortar os aflitos não se resume a uma mera obra de filantropia, mas é ação eclesial através da qual, nos enfermos, os membros da Igreja «tocam a carne sofredora de Cristo». [39]
50. No século XVI, São João de Deus, ao fundar a Ordem Hospitalar que leva o seu nome, criou hospitais modelo que acolhiam a todos, independentemente da sua condição social ou económica. A sua famosa expressão – “Fazei o bem, irmãos!” – tornou-se lema da caridade ativa com os doentes. Contemporaneamente, São Camilo de Léllis fundou a Ordem dos Ministros dos Enfermos – os Camilianos –, assumindo como missão servir os doentes com dedicação total. A sua regra ordena: «Cada qual peça a Deus que lhe dê um afeto materno para com o próximo, a fim de podermos servi-lo com todo o amor, tanto na alma quanto no corpo, pois, com a graça de Deus, desejamos servir todos os doentes com o mesmo carinho que uma extremosa mãe dedica ao seu filho doente». [40] Em hospitais, campos de batalha, prisões e ruas, os camilianos encarnaram a misericórdia de Cristo Médico.
51. Cuidando dos doentes com carinho maternal, como uma mãe cuida de seu filho, muitas mulheres consagradas desempenharam um papel ainda mais disseminado no cuidado sanitário dos pobres. As Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, as Irmãs Hospitaleiras, as Pequenas Servas da Divina Providência e tantas outras congregações femininas tornaram-se presença materna e discreta em hospitais, asilos e casas de saúde. Levaram remédio, escuta, presença e, sobretudo, ternura. Construíram, muitas vezes com as próprias mãos, estruturas sanitárias em zonas sem qualquer assistência médica. Ensinavam higiene, cuidavam dos partos, medicavam com sabedoria natural e fé profunda. As suas casas tornavam-se oásis de dignidade onde ninguém era excluído. O toque da compaixão era o primeiro remédio. Santa Luísa de Marillac escrevia às suas irmãs, Filhas da Caridade, recordando-as que haviam «recebido uma especial bênção de Deus para servir aos pobres enfermos nos hospitais». [41]
52. Hoje, esse legado continua em hospitais católicos, postos de saúde em regiões periféricas, missões sanitárias nas selvas, centros de acolhimento para toxicodependentes e hospitais de campanha em zonas de guerra. A presença cristã junto aos doentes revela que a salvação não é ideia abstrata, mas gesto concreto. No gesto de limpar uma ferida, a Igreja proclama que o Reino de Deus começa entre os mais vulneráveis. E ao fazer isso, permanece fiel Àquele que disse: «Adoeci e visitastes-me» (Mt 25, 36). Quando a Igreja se ajoelha diante dum leproso, criança desnutrida ou moribundo anónimo, ela realiza a sua vocação mais profunda: amar o Senhor onde Ele está mais desfigurado.
O cuidado com os pobres na Vida Monástica
53. A vida monástica, nascida no silêncio dos desertos, foi desde o início um testemunho de solidariedade. Os monges deixavam tudo – riqueza, prestígio, família – não só por desprezar as riquezas do mundo – contemptus mundi – mas para encontrar, neste despojamento radical, o Cristo pobre. São Basílio Magno, na sua Regra, não via contradição entre a vida de oração e recolhimento dos monges e a ação em favor dos pobres. Para ele, a hospitalidade e o cuidado com os necessitados eram parte integrante da espiritualidade monástica, e os monges, mesmo depois de terem deixado tudo para abraçar a pobreza, deveriam ajudar os mais pobres com o seu trabalho, pois «para se ter com que socorrer aos necessitados, evidencia-se que devemos trabalhar com diligência [...] este modo de viver é proveitoso não só para subjugar o corpo, mas ainda por causa da caridade para com o próximo, a fim de que, por nosso intermédio, Deus forneça o bastante aos irmãos mais fracos».