A originalidade cristã de Deus

Razões para Acreditar 8 janeiro 2024  •  Tempo de Leitura: 7

Quando se diz que o cristianismo aspira a ser universal, deve acrescentar-se que tem de respeitar e promover a originalidade de cada povo, de cada cultura.

 

1. Hoje, celebramos a Epifania de Jesus Cristo, isto é, a celebração do universalismo cristão. É costume dizer que toda a problemática em torno do Natal tem a marca do Ocidente litúrgico. A Epifania é marcada pelo Oriente.

 

Há muitos anos descobri Os Três Reis do Oriente – Gaspar, Melchior e Baltazar – de Sophia de M.B. Andresen. Trata-se de uma multifacetada teologia narrativa muito original. É um grande poema em prosa e um poema não suporta nem dá explicações. Apresento apenas uma pequena passagem, só como convite a uma nova leitura, perante as dimensões da crise actual, na Igreja e na sociedade.

 

Os três reis têm inquietações muito diferentes, mas aqui vou fixar-me na figura de Baltazar.

 

Este, depois de ter observado tudo, decepcionado com as consultas aos homens das ciências e da política, virou-se para a religião.

 

(…) Na manhã seguinte, dirigiu-se ao templo de todos os deuses. E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar: “Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força do domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses.”

 

Seguiu o rei para o segundo altar e leu: “Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.”

 

Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu: “Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo um espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram.”

 

E tendo passado pelos três altares, Baltazar interrogou os sacerdotes: —​ Dizei-me onde está o altar do deus que proteja os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore?

 

Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: —​ Desse deus nada sabemos.

 

Naquela noite, o rei Baltazar, depois de a lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse: —​ Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?

 

A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.

 

E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira [1].

 

2. Quando se diz que o cristianismo aspira a ser universal, deve acrescentar-se que tem de respeitar e promover a originalidade de cada povo, de cada cultura. Sem esse cuidado, seria um falso universalismo, uma abstracção. Por isso, o cristianismo só vive bem num permanente esforço de inculturação sem fraccionismo eclesial: todos diferentes, mas em comunhão. A pergunta que os cristãos nunca podem evitar, em todos os tempos e lugares, é a do rei Baltazar: onde está o altar do deus que proteja os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore? Esta pergunta deveria percorrer as instituições católicas.

 

Diz-se que se corre o risco, neste momento, de novas divisões na Igreja. Esses movimentos reconhecem as grandes e originais dimensões do espírito reformista do Papa Francisco. O grande empreendimento deste Papa é a promoção de uma Igreja sinodal que implica caminhar juntos na comunhão, na participação e na missão.

 

Isto, ao nível de toda a cristandade, é um longo acontecimento que nunca pode estar resolvido. É uma Igreja em processo de mudança e quem não perceber isto não entende nada da originalidade da intervenção do Papa Francisco.

 

É ele próprio que acaba de nos incitar a “não ter medo da diversidade de carismas na Igreja”. Pelo contrário, devemos alegrar-nos por vivenciar esta diversidade. Os cristãos precisam de compreender e viver o dom da diversidade. Se formos guiados pelo Espírito Santo, a riqueza, a variedade, a diversidade, nunca provocam conflito.

 

No mês que é marcado, no hemisfério norte, pela Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos — que este ano se celebra com o lema Amarás o Senhor teu Deus… e ao teu próximo como a ti mesmo (Lucas 10, 27) —, o Papa deixa no vídeo (04.01.2024) um apelo para que, na diversidade, “a comunidade cristã cresça como um só corpo, o corpo de Cristo ”.

 

E conclui: “O Espírito recorda-nos que, acima de tudo, somos filhos amados de Deus. Todos iguais no amor de Deus e todos diferentes.”

 

É um construir contínuo da Igreja de muitas igrejas por fidelidade aos seus começos.

 

3. Nunca se deve esquecer que o grande trabalho de Jesus, com os seus discípulos, foi fazê-los compreender que tinham de renunciar ao poder de dominação e converter-se ao poder de serviço.

 

São muitas as passagens dos Evangelhos sinópticos que realçam o contraste entre o poder mundano e o poder de servir: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim. Pelo contrário, quem, entre vós, quiser ser grande, seja o vosso servidor, e quem quiser ser o primeiro, entre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos”​ [2].

 

Sem procurar a resposta à pergunta do rei Baltazar —​ onde está o altar do deus que proteja os humilhados e os oprimidos —, perdemo-nos da originalidade cristã de Deus, fonte de alegria, e andaremos sempre à deriva.

 

[1] Contos Exemplares, Figueirinhas, 200435, 143-165. 1.ª Edição, 1962 da Livraria Morais

[2] Mc 20, 41-45; Mt 20, 24-28; Lc 22, 24-27

Artigos de opinião publicados no Jornal Público

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