A elaboração de uma nova teologia

Razões para Acreditar 12 novembro 2023  •  Tempo de Leitura: 9

1. O Concílio Vaticano II aconteceu porque João XXIII se revelou, como Papa, o fruto mais genuíno da liberdade do Evangelho e da atenção aos sinais dos tempos. Ao convocar o Concílio, mostrou que essa liberdade era para todos, a começar pelos teólogos mais inovadores e mais reprimidos. Apesar de todas as oposições, não desistiu desse caminho. Por outro lado, não se pode esquecer que o próprio documento sobre a Liberdade religiosa esteve na agenda conciliar desde o começo, mas só foi admitido e votado na fase final do Concílio, depois de ásperos e longos debates [1]. Apesar de todas essas dificuldades, esse documento recebeu 2308 votos a favor e apenas 70 contra.

 

A liberdade teológica, que caracterizou os debates do Vaticano II, não era para ficar reservada a esse tempo conciliar. Devia tornar-se também a característica de qualquer prática teológica. Assim não aconteceu. Sobretudo durante o tempo em que o Cardeal Ratzinger foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, parecia que tínhamos voltado à época pré-conciliar, tantas eram as condenações, não apenas da Teologia da Libertação – a mais falada –, mas da Teologia em todas as latitudes.

 

Como escrevi na crónica anterior, as igrejas vivem em contextos cada vez mais multiculturais e multirreligiosos, nos quais é essencial o compromisso de diálogo entre religião e cultura, juntamente com os outros grupos que compõem a sociedade. É nesses contextos que somos chamados a dar razão da nossa esperança, o que exige uma nova inteligência da fé. Como diz o Papa Francisco, na última Carta Apostólica, para promover a teologia no futuro não se pode ficar a reproduzir fórmulas e esquemas do passado. O que estamos a viver não é simplesmente uma época de mudança, mas uma mudança de época. Julgo que foi Bergoglio que cunhou esta expressão.

 

De facto, o Papa não podia continuar a fazer as propostas que tem feito acerca das exigências da prática teológica e deixar intacta a Academia Pontifícia de Teologia, sobre a qual tem especiais responsabilidades. Uma Igreja sinodal, missionária e em saída só pode ser servida por uma teologia, também ela em saída. A Academia Pontifícia tem de dar esse exemplo e abandonar a pretensão de ser a instituição da conserva teológica. Eu ainda vivi no tempo em que Roma era um freio contra todas as ousadias. Neste momento, o Papa representa a vanguarda e o incitamento à criatividade de todo o povo cristão, em todos os campos de vida e actuação – nem Deus sem mundo, nem mundo sem Deus.

 

2. Em 1935, pediram a Yves Congar, O.P. um diagnóstico sobre o Inquérito então realizado pela famosa revista La vie Intelectuelle sobre as razões da descrença actual. A análise teológica do longo processo do divórcio entre a Igreja e os movimentos científicos, culturais e sociais, que agitaram a gestação do mundo moderno, ficou condensada numa frase que sempre me impressionou: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião. Philipe Roqueplo, no começo da sua tese de doutoramento – Experiência do mundo, experiência de Deus? –. mostrou a que ponto a teologia oficial permanecia impermeável a todas as tentativas de integrar, na experiência cristã, as tarefas da construção do mundo e de acolhimento do Reino de Deus [2].

 

Francisco, na homilia da celebração de encerramento da Assembleia Sinodal, lembrou dimensões fundamentais da fé cristã e passo a citar: no mandamento maior, Cristo liga Deus e o próximo, para que nunca mais apareçam separados. Não existe experiência religiosa que seja surda ao grito do mundo. Estou a falar de uma verdadeira experiência religiosa.

 

Nessa mesma homilia, pratica o que a todos recomenda: penso naqueles que são vítimas das atrocidades da guerra; nas tribulações dos migrantes, no sofrimento escondido de quem se encontra sozinho e em condições de pobreza; em quem é esmagado pelos fardos da vida; em quem já não tem mais lágrimas, em quem não tem voz. E penso nas vezes sem conta em que, por trás de lindas palavras e eloquentes promessas, se favorecem formas de exploração ou, então, nada se faz para as evitar. É um pecado grave explorar os mais frágeis, pecado grave que corrói a fraternidade e destrói a sociedade. Nós, discípulos de Jesus, queremos levar ao mundo outro fermento, o do Evangelho: Deus no primeiro lugar e, juntamente com Ele, aqueles para quem vão as suas predilecções, ou seja, os pobres e os mais frágeis.

 

O Papa mostrou que Deus, ao contrário do que foi muito repetido, não é um ópio, não é alienante: Ao adorá-Lo, redescobrimo-nos livres. Por isso, na Sagrada Escritura, o amor ao Senhor aparece frequentemente associado à luta contra toda a idolatria. Quem adora a Deus rejeita os ídolos, pois, enquanto Deus liberta, os ídolos tornam-nos escravos. Devemos lutar sempre contra as idolatrias, sejam as mundanas, que muitas vezes derivam da vanglória pessoal, como a ânsia do sucesso, a auto-afirmação a todo custo, a ganância do dinheiro (o diabo entra pelos bolsos, não o esqueçamos!), o encanto do carreirismo; sejam as disfarçadas de espiritualidade, como quando se diz a minhaespiritualidade, as minhas ideias religiosas, a minha habilidade pastoral, vigiemos para não acontecer colocarmo-nos no centro a nós em vez d’Ele.

 

 

3. Ser cristão é acreditar e confessar que Cristo liga, de forma inseparável, Deus e o mundo. Esta convicção levou o Papa a escrever a famosa encíclica Laudato Si’ (2015), para salvar a Casa Comum, a casa de todos os seres humanos, salvar todos os mundos.

 

Passados oito anos, verifica que não estamos a reagir como devíamos, pois este mundo que nos acolhe está a esboroar-se e talvez a aproximar-se do ponto de ruptura. Escolheu o dia do início da Assembleia Sinodal (04.10.2023) para insistir e alargar a consciência de todos para os perigos que corremos, como se nada fosse. Louvar a Deus é o título do novo escrito papal [3], porque Deus não pode ser louvado se estragamos o seu mundo, nosso mundo.

 

Na homilia do encerramento dessa Assembleia, como já disse, voltou a insistir: Cristo liga Deus e o próximo, para que nunca mais apareçam separados. Deus fez-se humano [4]. Não o desumanizemos.

 

No prefácio ao livro de Antonio Spadaro, o Papa Francisco faz um apelo: neste tempo de crise da ordem mundial, de guerra e de grandes polarizações, de paradigmas rígidos, de graves desafios a nível climático e económico, precisamos da genialidade de uma linguagem nova, de histórias e imagens poderosas, de escritores, poetas, artistas capazes de gritar ao mundo a mensagem evangélica, de nos fazer ver Jesus [5]. Um Jesus Cristo que nos seduza.

 

[1] Isto é, a 07.12.1965
[2] Cf. Frei Bento Domingues, O.P., A Humanidade de Deus, Mário Figueirinhas Editor, 1995, pp. 9-13
[3] Papa Francisco, Louvai a Deus, Exortação apostólica Laudate Deum sobre a crise climática, Editorial A.O., 2023
[4] Cf. Jo 1, 1.14
[5] Uma trama divina. Jesus em contracampo, Paulinas Editora, 2023, p. 11

Artigos de opinião publicados no Jornal Público

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