O valor político da fraternidade

Razões para Acreditar 26 novembro 2023  •  Tempo de Leitura: 7

«Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos» (FT 8). É o «novo sonho de fraternidade e amizade social» (FT 6) que o papa Francisco invoca com a sua encíclica “Fratelli tutti”. É o sonho de um verdadeiro encontro entre o Evangelho e a política, encontro que exige hoje uma descoberta apropriada do valor da fraternidade universal a compreender como um outro rosto do amor. A lógica da fraternidade é lógica evangélica por excelência, mas é também lógica intimamente política. A fraternidade representa hoje uma das palavras que melhor podem apontar a direção, pode ser num tempo de perda do humano, de desorientação, de incerteza do viver, um traço fundamental para o compromisso político dos crentes e não só. E a política ou redescobre o significado autêntico da fraternidade ou está distante do Evangelho.

 

Fraternidade não é, todavia, uma palavra mágica, um resultado mecanicamente alcançável, mas um dado de base que se torna tarefa, resultado de ações e opções de vida.

 

Com efeito, a fraternidade deriva de se ser homem e mulher, filho e filha do mesmo Pai; está ligada a uma humanidade comum que pode ser reconhecida como tal a partir das fés religiosas e também para além delas. Neste sentido, a fraternidade um ser que se torna compromisso, um dado que se torna tarefa. O dado de se ser irmão e irmã, o dado da humanidade comum, tem em si toda a potencialidade positiva do humano, a sua capacidade de conjugar unidade e diversidade, de pensar-se e de ser uma só família. Mas este dado não diz nada que esteja adquirido, está suspenso por vivências relacionais ajustadas, está vinculado ao esforço de buscar a fraternidade e de continuar a buscá-la.

 

Se a fraternidade tem a ver fundamentalmente com as pessoas, apenas tem um valor privado ou, no máximo, está ligado a horizontes de caráter humanitário? Que relação instaura a fraternidade com o exercício da vida democrática e que incidência pode ter nas transformações e no futuro da sociedade?



A fraternidade aparece muitas vezes ferida ou negada: os conflitos, nos seus aspetos mais dramáticos e problemáticos, afligem muitas vezes as famílias, atravessam os Estados, opõem os povos entre eles, põem em crise a própria ideia de humanidade. É por isso que o ser-se irmão e irmã é uma tarefa, um compromisso, uma possibilidade do humano que está confiada à responsabilidade.

 

No seu desenvolvimento e na sua realização possível, a fraternidade vem das pessoas; precisa de ser suscitada e cultivadas pelas pessoas e nas pessoas. Aqui reside simultaneamente a sua força e a sua fraqueza, aqui estão a oportunidade e ao mesmo tempo os perigos desta noção, que tantas vezes foi usada e instrumentalizada. Não basta falar de fraternidade, invocar-lhe o valor. É preciso reconhecer que, como escreve Edgar Morin, «há a fraternidade fechada e há a fraternidade aberta». Isto coloca-nos interrogações radicais que ajudam a perceber o significado político da ideia de fraternidade.

 

Se a fraternidade tem a ver fundamentalmente com as pessoas, apenas tem um valor privado ou, no máximo, está ligado a horizontes de caráter humanitário? Que relação instaura a fraternidade com o exercício da vida democrática e que incidência pode ter nas transformações e no futuro da sociedade?

 

Esta linha que o Evangelho traça com eloquência na narrativa do bom samaritano tem uma condição essencial de possibilidade: tomar as rédeas da fragilidade. «A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos económicos, políticos, sociais e religiosos»


A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. O Evangelho diz-nos, antes, que é possível outra perspetiva e que a indiferença não é o único caminho, diz-nos que as inimizades podem ser vencidas e que é possível cuidarmos uns dos outros. Diz-nos que é possível uma fraternidade universal, na condição de «alargar o coração a fim de não excluir o estrangeiro» (FT 61). 

 

O Evangelho atesta um estilo, um modo de ser e de viver as relações, uma chave de compreensão do humano e das relações que lhe tornam possível o desenvolvimento, e isto através de histórias exemplares de vida, e não mediante indicações abstratas ou temas teóricos.

 

Esta linha que o Evangelho traça com eloquência na narrativa do bom samaritano tem uma condição essencial de possibilidade: tomar as rédeas da fragilidade. «A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos económicos, políticos, sociais e religiosos» (FT 69). Assim declara o papa Francisco, realçando que a fragilidade dos outros é o motivo fundamental de compromisso social e político para todos. A fragilidade dos outros, de todos os outros, sem exclusão; essa fragilidade em que se reconhece, para além de todas as pretensões de autossuficiência, a condição da nossa comum humanidade.

 

Amor e política estão mais próximos do que se possa pensar. Há uma universalidade do amor que é, vendo bem, a outra face da universalidade da política. Nesta perspetiva contam, em igual medida, apesar de não serem comparáveis, quer os gestos concretos, únicos e irrepetíveis, relativos a pessoas concretas, as experiências concretas de fraternidade, quer as ações políticas de grande alcance voltadas para a transformação da realidade e capazes de se configurarem de maneira estável e duradoura. As experiências específicas de bem, de atenção e de compromisso por quem sofre podem ser veículo para uma mentalidade nova e para um compromisso sem fronteiras.

 
[Franco Miano | In Avvenire, 11.10.2023]

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