Fé, cultura e sociedade

Razões para Acreditar 23 novembro 2018  •  Tempo de Leitura: 32

O horizonte temático sugerido pelo trinómio «moralidade, economia, sociedade secularizada» - ou, alargando o olhar, «fé, cultura, sociedade» - é evidentemente imenso e admite infinitos percursos de análise e múltiplos resultados de balanço e de síntese. Por isso, é inegável que a nossa poderá ser apenas uma reflexão emblemática no interior da qual se abrem espaços em branco, passíveis de ulteriores e amplas considerações.

 

Uma premissa

Iniciamos com uma premissa. «Economia» é uma palavra grega que significa «a lei da casa» do mundo, na qual devem ser consideradas antes de tudo as pessoas antes de qualquer realidade financeira. Finança e economia não são, por isso, sinónimos. O elemento fundamental é reconhecer que a figura central que domina o horizonte é a pessoa humana. A finança é apenas um instrumento que deve estar ao serviço da economia, que é a regra da vida social de toda a humanidade.

 

Em momentos difíceis há a necessidade de recuperar alguns valores culturais e éticos fundadores. Enquanto homem de Igreja e exegeta bíblico, gostaria de partir da visão cristã profundamente inervada no interior da sociedade e da cultura, ao ponto de constituir uma presença imprescindível. Com efeito, como é sabido, a tese central do cristianismo permanece na incarnação: «O Verbo fez-se carne» (João 1, 14). Portanto, no cristianismo há um entrelaçamento entre fé e história, e, por isso, um contacto entre religião e vida política e social.

 

Assim, tratar deste tema penetra nos próprios fundamentos da experiência judaico-cristã, e portanto da Bíblia, que entre outras dimensões é também o «grande códice» da nossa cultura ocidental. Goethe considerava o cristianismo a «língua materna» da Europa, na medida em que representa uma espécie de "impressão" que todos nós temos por trás. Para alguns talvez possa ser um peso; para muitos, ao contrário, permanece uma herança preciosa.

 

Para desenvolver o tema de forma simplificada, confiar-nos-emos a quatro componentes ou princípios emblemáticos fundamentais, deixando entre parêntesis outros igualmente relevantes.

 

1. O princípio personalista

A primeira conceção radical que propomos poderia ser definida como o "princípio personalista". O conceito de pessoa, que para o seu nascimento teve também a contribuição de outras correntes de pensamento, adquire efetivamente no mundo judaico-cristão uma configuração particular através de um rosto que tem um duplo perfil, e que agora representaremos fazendo referência a dois textos bíblicos essenciais que são quase o início absoluto da antropologia cristã e da própria antropologia ocidental.

 

O primeiro texto provém de Génesis 1,27, e portanto das primeiras linhas da Bíblia: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher».

 

Aparece aqui a primeira dimensão antropológica: "horizontal", isto é, a grandeza da natureza humana é situada na relação entre homem e mulher. Trata-se de uma relação fecunda que nos torna semelhantes ao Criador («imagem de Deus») porque, gerando, a humanidade, em certo sentido, continua a criação. Eis, então, um primeiro elemento fundamental: a relação, o ser em sociedade é estrutural para a pessoa. O homem nãoé  uma mónada fechada em si mesma, mas é, por excelência, um "eu ad extra", uma realidade aberta. Só assim ele alcança a sua plena dignidade, tornando-se a «imagem de Deus». Esta relação é constituída por dois rostos diferentes e complementares do homem e da mulher que se encontram (relevante, a este respeito, é a reflexão de Lévinas).

 

Permanecendo no âmbito deste primeiro fundamental princípio personalista, passamos a outra dimensão que já não é horizontal, mas "vertical", que ilustramos continuando a recorrer a outra frase do Génesis: «O Senhor Deus formou o homem do pó da terra». Isto é típico de todas as cosmologias orientais e é uma maneira simbólica de definir a materialidade do homem. Mas acrescenta-se: «E insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo» (2, 7).

 

Para intuir o verdadeiro significado do texto é necessário voltar ao original hebraico: "nishmat hayyîm", locução que no Antigo Testamento ocorre 26 vezes e, curiosamente, é aplicada só a Deus e ao homem, nunca aos animais ("rûah", o espírito, a alma, a respiração vital para a Bíblia, está, por seu lado, presente também nos animais). Este categoria antropológica específica é explicada por um passo do livro bíblico dos Provérbios: no homem, a "nishmat hayyîm" é uma «lâmpada do Senhor, que penetra todos os recônditos do ser» (20, 27).

 

Como é fácil de imaginar, é mediante esta simbólica que se chega à representação da capacidade do homem de se conhecer, de ter uma consciência e até de entrar no inconsciente (o hebraico usa a imagem forte de «câmara escura do ventre»). Trata-se da representação da interioridade última, profunda, que a Bíblia noutros trechos descreve simbolicamente com "reni".

 

O que insufla, pois, Deus em nós? Uma qualidade que só ele tem e que nós partilhamos com ele e que podemos definir como "autoconsciência", mas também "consciência ética". Logo depois, com efeito, sempre na mesma página bíblica, o homem é apresentado, sozinho, debaixo da «árvore do conhecimento do bem e do mal», uma árvore evidentemente metafórica, metafísica, ética, enquanto representação da moral.

 

Temos, assim, identificada outra dimensão: o homem possui uma capacidade transcendente que o leva a estar unido "verticalmente" ao próprio Deus. É a capacidade de penetrar em si mesmo, de ter uma interioridade, uma intimidade, uma espiritualidade. A dúplice representação ético-religiosa da pessoa descrita até agora na relação com o próximo e com Deus poderá ser delineada com uma imagem muito sugestiva de Wittgenstein, que no prefácio ao "Tractatus logico-philosophicus", ilustra o objetivo do seu trabalho.

 

Ele afirma que a sua intenção era investigar os contornos de uma ilha, ou seja, o homem circunscrito e limitado. Mas o que descobriu no fim foram as fronteiras do oceano. A parábola é clara: se se caminha numa ilha e se se olha apenas para um lado, para terra, há o risco de a circunscrever, medi-la e defini-la. Mas se o olhar é mais vasto e completo e se dirige também para o outro lado, descobre que sobre esse confim batem igualmente as ondas do oceano. Na essência, como afirmam as religiões, na humanidade há um entretecimento entre a finitude limitada e qualquer coisa de transcendente, conforme depois se deseja defini-lo.

 

2. O princípio da autonomia

O segundo princípio do mapa socioantropológico ideal que estamos a delinear é paralelo ao anterior e é, como ele, dúplice. Poderia ser denominado "de autonomia", e, para ilustrá-lo, recorremos a um texto que é fundamental não só na religiosidade, mas também na própria memória da cultura ocidental, ainda que não tenha sido sempre corretamente interpretado. Trata-se de um celebérrimo passo evangélico: «Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (Mateus 22, 21). Uma fórmula lapidar, o único verdadeiro pronunciamento político-social de Cristo, ao passo que todos os outros são mais indiretos e menos explícitos.

 

Para compreender corretamente esta afirmação, é preciso entrar na mentalidade semita que recorre frequentemente às chamadas "parábolas em ação", através das quais a mensagem é formulada com um gesto, com uma série de comportamentos simbólicos, e não só com as pelavras.

 

Com efeito, Cristo, ao início, diz aos seus interlocutores: «Mostrai-me a moeda», a que se segue uma pergunta fundamental: «De quem é a imagem e a inscrição?». E a resposta é: «De César». Consequentemente: «Dai a César o que é de César». A primeira parte da frase de Cristo reconhece, assim, uma autonomia à política. Uma verdadeira conceção cristã deveria sempre excluir qualquer género de teocracia sagrada. Não pertence ao autêntico espírito cristão a união entre trono e altar, ainda que na história, infelizmente, o cristianismo a tenha favorecido em muitas ocasiões.

 

A conceção jurídica islâmica na forma mais conhecida da "shariyyah" é estranha ao espírito cristão: o Código de Direito Canónico não pode ser automaticamente o código de direito civil ou penal, assim como a Constituição de um estado não pode ser o Evangelho. Trata-se de realidades que devem permanecer sempre bem distintas. A política, a economia, a sociedade civil têm o seu espaço de autonomia, em cujo interior se desenvolvem normas, escolhas, atuações dotadas de uma sua imanência, sobre as quais não devem interferir outros âmbitos externos.

 

Mas as palavras de Cristo não terminam aqui: há uma segunda parte implícita, baseada sempre no tema das "imagens". Jesus, efetivamente, ao perguntar de quem é «a imagem», a propósito da moeda, faz indiretamente uma referência ao texto bíblico acima citado sobre o homem como «imagem» de Deus. Eis, então, uma segunda dimensão: a criatura humana deve, sim, respeitar as normas próprias da "pólis", da sociedade, mas, ao mesmo tempo, não deve esquecer de que é dotada de uma dimensão posterior. É este o âmbito específico da religião e da moral, nas quais emergem as questões da liberdade, da dignidade humana, da realização da pessoa, da vida, da interioridade, dos valores, do amor.

 

Todos estes temas têm a sua autonomia precisa e não admitem prevaricações ou subjugações da parte do poder político e económico. Com efeito, se é verdadeiro que não se deve ter uma teocracia, é também inadmissível uma idolatria do Estado que caia secularmente sobre o outro âmbito, esvaziando-o ou até anulando-o. É fácil compreender a complexidade e árdua a declinação concreta de tal autonomia, como o é o contraponto estre estas duas esferas, porque único é o sujeito a que ambas se dedicam, isto é, a pessoa humana, singular e comunitária.

 

3. O princípio de solidariedade, justiça e amor

Chegamos, assim, ao terceiro princípio, que é fundamental para o cristianismo e para todas as outras religiões, ainda que com acentuações diferentes. Regressamos ao retrato do rosto humano que, como dissemos, tem a dimensão masculina e feminina, ou seja, tem na base a relação interpessoal. No capítulo 2 do Génesis, a verdadeira hominização não se dá só com a citada "nishmat hayyîm", que torna a criatura transcendente; não se dá também apenas como o "homo technicus" que «dá o nome aos animais», ou seja, que se dedica à ciência e ao trabalho.

 

O homem é verdadeiramente completo em si quando encontra - como diz a Bíblia - «uma auxiliar semelhante a ele», em hebraico "kenegdô", literalmente "que esteja defronte" (2, 18.20). O homem, portanto, tende para o alto, o infinito, o eterno, o divino segundo a conceção religiosa, e pode tender também para baixo, para os animais e a matéria. Mas torna-se verdadeiramente ele próprio só quando se encontra com «os olhos nos olhos» do outro. Eis de novo o tema do rosto. Quando encontra a mulher, isto é, o seu semelhante, pode dizer: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne» (2, 23), é a minha própria realidade.

 

E aqui coloca-se o terceiro ponto cardeal que formulamos com um termo moderno, cuja substância está na tradição judaico-cristã, quer dizer, "o princípio de solidariedade". O facto de sermos todos "humanos" está expresso na Bíblia com o vocábulo "Adão", que em hebraico é "ha-’adam", com o artigo (ha-), e significa simplesmente "o homem". Por isso existe em todos nós uma "adamicidade" comum. O tema da solidariedade é, então, estrutural na nossa realidade antropológica de base. A religião exprime esta unicidade antropológica com dois termos que são duas categorias morais: justiça e amor. A fé assume a solidariedade, que está também na base da filantropia laica, mas vai mais além. Com efeito, no Evangelho de João, na última noite da sua vida terrena, Jesus pronuncia uma frase extraordinária: «Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos» (15, 13).

 

Evitando longas análises, ainda que necessárias, ilustramos agora simbolicamente, em chave religiosa, as duas virtudes morais da justiça e do amor com dois exemplos respeitantes a diferentes culturas religiosas.

 

O primeiro exemplo é um texto surpreendente sobre a justiça: «A terra [trata-se do tema do destino universal dos bens, e, portanto, da justiça] - foi criada como um bem comum para todos, para os ricos e para os pobres. Porquê, então, ò ricos, vos arrogais um direito exclusivo sobre o solo? Quando ajudas o pobre, tu, rico, não lhe dás o que é teu, mas dás-lhe o que é dele. Com efeito, a propriedade comum que foi dada em uso a todos, só tu a usas. A terra é de todos, não só dos ricos, e por isso quando ajudas o pobre, tu restituis-lhe o que é devido, não lhe dás um presente». Verdadeiramente sugestiva esta declaração que remonta ao século IV e é formulada por Ambrósio de Milão no seu escrito "De Nabuthe".

 

Este forte sentido da justiça deveria ser um aviso e um espinho que a fé introduz na sociedade, o anúncio de uma justiça que atua no destino univbersal dos bens. Ela não exclui um são e equitativo conceito de propriedade privada, que, contudo, permanece apenas um meio - muitas vezes contingente e insuficiente - para atuar o princípio fundamental do universal dom dos bens a toda a humanidade da parte do Criador. Neste sentido, recorrendo uma vez mais à Bíblia, é com naturalidade que se volta a ouvir a voz autorizada e severa dos profetas (leia-se, por exemplo, o poderoso livrinho de Amós, com as suas precisas e documentadas denúncias contra as injustiças do seu tempo).



O segundo testemunho que desejamos evocar diz respeito ao amor, e, no espírito de um diálogo inter-religioso, retemo-lo do mundo tibetano, mostrando assim que as culturas religiosas, ainda que diferentes, têm no fundo pontos de encontro e de contacto. Trata-se de uma parábola onde se imagina uma pessoa que, caminhando no deserto, avista ao longe algo de confuso. Por isso começa por ter medo, dado que na solidão absoluta da estepe uma realidade obscura e misteriosa - talvez um animal, uma besta perigosa - não pode deixar de inquietar. Avançando, o viajante descobre que, afinal, não se trata de um animal, mas de um homem. Mas o medo não desaparece, antes aumenta o pensamento de que aquela pessoa possa ser um salteador. Todavia, obriga-se a avançar até quando fica na presença do outro. Então o viajante levanta os olhos e, com surpresa, exclama: «É o meu irmão, que não via há tantos anos!».

 

A distância gera temores e obsessões; o homem deve aproximar-se do outro para vencer o medo, por muito compreensível que seja. Recusar-se a conhecer o outro e a encontrá-lo equivale a renunciar àquele amor solidário que dissolve o terror e gera a verdadeira sociedade. Aqui floresce o amor que é o apelo mais alto do cristianismo para a edificação de uma "pólis" diversa (cf. o célevre hino paulono ao "ágape"-amor presnte no capítulo 13 da primeira carta aos Coríntios.

 

4. O princípio da verdade

O vocábulo "cultura" tornou-se, nos nossos dias, uma espécie de palavra-chave que abre as fechaduras mais diversas. Quando o termo foi cunhado, no século XVIII alemão ("cultur", que depois se tornou "kultur"), o conceito subjacente era claro e circunscrito: abraçava o horizonte intelectual alto, a aristocracia do pensamento, da arte, do humanismo. Desde há décadas, no entanto, esta categoria "democratizou-se", alargou os seus confins, tem assumido carateres antropológicos mais gerais, no seguimento da conhecida definição criada em 1982 pela Unesco; tanto é que se adota o adjetivo «transversal» para indicar a multiplicidade de âmbitos e experiências humansa que ela "atravessa".

 

É a esta luz que se compreendem as reservas avançadas pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, convicto de que o termo "cultura" é «o pior conceito jamais formulado»; a ele ecoará o colega americano Clifford Geertz, quando afirma que ele é destituído de capacidade heurística. No entanto, este âmbito geral, ou, se se preferir, "generalismo" relaciona-se com a conceção clássica quanto então vigoravam outros termos sinónimos muito significativos: pensamos na "paideia" grega, na latina "humanitas" ou na nossa "civilização".

 

Neste ponto é natural entrar - sempre de forma muito essencial - na questão no nexo mais específico e das interações entre as diversas culturas que contactam entre elas. Ora, foi precisamento no séc. XVIII alemão, em que - como se disse antes - foi cunhado o termo "cultur"/"kultur", que se começou também a falar de "culturas" no plural, lançando assim as bases para reconhecer e compreender esse fenómeno que agora é definido como "multiculturalidade".

 

A abrir este caminho esteva Johann Gottfried Herder, com as suas "Ideias sobre a filosofia da história da humanidade (1784-91). A emergência de um pluralismo cultural - com algumas simplificações - via cruzar-se etnocentrismo e interculturalidade. Foi constante, com efeito, a oscilação entre estes dois extremos, de que nós somos hoje ainda testemunhas.

 

O etnocentrismo exacerba-se em domínios políticos ou religiosos de tendência integralista, orgulhosamente aferrada à convicção do primado absoluto da própria civilização, numa escala que chega ao desprezo de outras culturas classificadas como "primitivas" ou "bárbaras". Lapidar era a afirmação de Tito Lívio na sua "História": Guerra existe e sempre existirá entre os bárbaros e todos os gregos» (31, 29). Esta atitude é reproposta nos nossos dias sob a fórmula do "confronto de civilizações", codificada no famoso ensaio de 1996 do politólogo Samuel Huntington, falecido em 2008, "O confronto das civilizações e a nova ordem mundial".

 

Neste texto eram elencadas oito culturas (ocidental, confuciana, japonesa, islâmica, hindu, eslavo-ortodoxa, latino-americana e africana), sublinhando-se as diferenças, que deveriam espoletar no Ocidente um sinal de alarme para a autodefesa do próprio tesouro de valores, assaltado por modelos alternativos, e pelos «desafios das sociedades não ocidentais». Nesta visão era significativa a intuição de que, sob a superfície dos fenómenos políticos, económicos, militares, havia um núcleo duro e profundo de matriz cultural e religiosa. Certo é que, no entanto, se se adota o paradigma do "confronto de civilizações", entra-se na espiral de uma guerra infinita, como já tinha intuído Tito Lívio.

 

A perspetiva mais correta, seja no âmbito humanista seja no teológico, é, ao invés, a da interculturalidade, que é uma aproximação deveras diferente à "multiculturalidade". Ela baseia-se no reconhecimento da diversidade como uma florescência necessária e precisa da raiz comum "adâmica", sem, porém, perder a própria especificidade. Propõe-se, então, a atenção, o estudo, o diálogo com civilizações antes ignoradas ou remotas, mas que agora emergem fortemente sobre uma ribalta cultural até agora ocupada pelo Ocidente (pense-se, além do Islão, na Índia e na China), uma exposição que é favorecida não só pela atual globalização, mas também por meios de comunicação capazes de ultrapassar toda a fronteira (a rede informática é o seu símbolo capital).

 

Estas culturas, "novas" para o Ocidente, exigem uma interlocução, muitas vezes imposta pela sua presença imperiosa, tanto mais que agora se tende a falar de "glocalização" como novo fenómeno de interação planetária. Deve-se, portanto, falar de um compromisso complexo de confronto e de diálogo, de intercâmbio cultural e espiritual.

 

Chegamos assim - após este longo itinerário preliminar pelas várias dimensões do conceito de "cultura" - ao quarto princípio, que denominaremos com um termo que se tornou, se não obsoleto, certamente fonte de equívocos e de disputas, o de "verdade". A cultura, com efeito, funda-se substancialmente no conhecimento que comporta precisamente o importante perfil da verdade, categoria base do conhecimento.

 

Se seguirmos o percurso cultural destes últimos séculos, podemos dizer que o conceito de verdade se tornou cada vez mais subjetivo, até chegar ao "situacionismo" do século passado. Pense-se, por exemplo, na famosa frase deveras significativa e frequentemente citada, do "Leviathan", de Hobbes: «Auctoritas, non veritas facit legem». Em última análise é este o princípio do contratualismo, segundo o qual a autoridade, seja civil seja religiosa, pode decidir a norma e, portanto, indiretamente a verdade, com base nas conveniências da sociedade e nas vantagens do poder.

 

Tal conceção fluida da verdade está agora largamente adquirida - basta pensar na antropologia cultural. O filósofo francês Michel Foucault, estudando as diferentes culturas, convidava vivamente a acentuar esta dimensão subjetiva e mutável da verdade, semelhante a uma medusa que muda continuamente de aspeto conforme os contextos e as circunstâncias. Este subjetivismo é, substancialmente, o que Bento XVI chama de "relativismo". É curioso notar como a pensadora americana Sandra Harding se baseava na célebre frase do Evangelho de João (8, 32), «a verdade tornar-vos-á livres», afirmando, ao contrário, num seu ensaio, que «a verdade não vos tornará livres», porque ela é concebida como uma capa de chumbo, como uma pré-compreensão, como uma esterilização do dinamismo e da incandescência do pensamento.

 

Todas as religiões, e em particular o cristianismo, têm, por seu lado, uma conceção transcendente da verdade: a verdade precede-nos e excede-nos; ela tem um primado de iluminação, não de domínio. Ainda que o pensamento de Theodor Adorno fosse noutra direção, é sugestiva uma expressão sua extraída dos "Minima moralis". O filósofo alemão fala da verdade comparando-a à felicidade, e declara: «A verdade não se possui, está-se nela», isto é, está-se imerso nela. Musil, no seu famoso romance "O homem sem qualidades", faz dizer ao protagonista uma frase interessante: «A verdade não é como uma pedra preciosa que se mete no bolso, a verdade é como um mar no qual se imerge e se navega».

 

Trata-se, fundamentalmente, da clássica conceção platónica expressa no "Fedro" mediante a imagem da "planície da verdade": o carro da alma corre sobre esta planície para a conhecer e conquistar, enquanto que na "Apologia de Sócrates", para além das objeções que alguns especialistas podem colocar no que diz respeito à tradução do passo em questão, lê-se: «Uma vida sem procura não merece ser vivida», e é precisamente este o itinerário a cumprir no horizonte "dado" da verdade. Deste ponto de vista, as religiões são claras: a verdade tem um primado que nos supera, a verdade é transcendente, compete ao homem ser peregrino no interior do absoluto da verdade. E isto é de tal maneira decisivo que o cristianismo aplica a Cristo a identificação com a verdade por excelência (João 14, 6: «Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida»).

 

Conclusão

A tetralogia de princípios que delineámos de maneira discursiva não esgota, decerto, a complexidade das relações e as próprias tensões que ocorrem entre fé, cultura e sociedade. Outros princípios poderiam ser alegados, igualmente relevantes e delicados. Pensamos, por exemplo, noutra tetralogia que se poderia desenvolver e que condiciona fortemente o debate contemporâneo sobre o tema: a categoria "natureza", o conceito de "bem comum", a questão da relação entre ética e direito, a perspetiva da "utopia".

 

A nossa é apenas uma introdução algo reduzida em torno a quatro eixos antropológicos. No centro, efetivamente, há sempre a pessoa humana na sua dignidade, na sua liberdade e autonomia, mas também nas suas relações com o exterior de si, e, portanto, com a transcendência. Reunir em conjunto as várias dimensões da criatura humana no âmbito da vida social e política é muitas vezes difícil, e a história acolhe uma constante comprovação das crises e das lacerações.

 

Todavia, a necessidade de reunir em conjunto "simbolicamente" (syn-bállein) estas diferenças é indiscutível se se quer edificar uma "pólis" autêntica, não fraturada "diabolicamente" (dià-bállein) em fragmentos opostos de maneira fundamentalista uns aos outros. É isto que delineamos sinteticamente, em conclusão, recorrendo a uma outra testemunha de índole ético-religiosa depreendida, uma vez mais, de uma cultura diferente da nossa ocidental. Referimo-nos a um septenário proposto por Gandhi, que define de maneira fulgurante esta "simbolicidade" de valores necessária para impedir a destruição da convivência social.

1. O homem destrói-se com a política sem princípios;
2. o homem destrói-se com a riqueza sem fadiga e sem cansaço;
3. o homem destrói-se com a inteligência sem a sabedoria;
4. o homem destrói-se com os negócios sem a moral;
5. o homem destrói-se com a ciência sem humanidade;
6. o homem destrói-se com a religião sem a fé [como o fundamentalismo ensina];
7. o homem destrói-se com um amor sem o sacrifício e a doação de si.

 

[Card. Gianfranco Ravasi | Budapeste, Universidade "Corvinus", 6.2.2014]

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail