«Houve muitos silêncios»: Papa fala de migrantes

Vaticano 9 setembro 2018  •  Tempo de Leitura: 9

«As respostas aos pedidos de ajuda, ainda que generosas, talvez não estejam a ser suficientes, e encontramo-nos hoje a chorar milhares de mortes [de migrantes]. Houve muitos silêncios»: Foi hoje publicada a primeira entrevista do papa a um jornal económico, o italiano “Il Sole 24 Ore”.

 

Francisco frisa que «a atual centralidade da atividade financeira em relação à economia real não é casual», dado que «por trás dela há a escolha de alguém que pensa, erradamente, que dinheiro faz dinheiro», quando «o dinheiro, o verdadeiro, faz-se com o trabalho.», pois é ele «que confere a dignidade ao ser humano, não o dinheiro», e apresenta um conjunto de propostas com vista ao desenvolvimento integral do ser humano.

 

«A ideia de que o trabalho é só cansaço está bastante espalhada, mas todos experimentamos que não ter um trabalho é muito pior do que trabalhar. Quantas vezes recolhi lágrimas de desespero de pais e mães que deixaram de ter trabalho», afirma.

 

Francisco constata que «os pobres em movimento fazem medo especialmente aos povos que vivem no bem-estar. E todavia não há futuro pacífico para a humanidade a não ser no acolhimento da diversidade, na solidariedade, no pensar na humanidade como uma só família».

 

É possível aos países receber «um certo número de pessoas, sem negligenciar a possibilidade de as integrar e organizar de maneira digna», ao mesmo tempo que se empreendem «percursos de investimento» nos países de origem dos migrantes, «em formação, da escola ao desenvolvimento de verdadeiros sistemas culturais e, sobretudo, em trabalho». Seguem-se algumas passagens do diálogo.

 

A finança que domina a economia real

 

«A atual centralidade da atividade financeira em relação à economia real não é casual: por trás dela há a escolha de alguém que pensa, erradamente, que dinheiro faz dinheiro. O dinheiro, o verdadeiro, faz-se com o trabalho. É o trabalho que confere a dignidade ao ser humano, não o dinheiro. O desemprego que envolve vários países europeus é a consequência de um sistema económico que deixou de ser capaz de criar trabalho, porque tem na raiz um ídolo, que se chama dinheiro. (…) Digo muitas vezes também aos jovens para não deixarem que lhes roubem a esperança. Devemos também ser astutos, porque o Senhor faz-nos compreender que os ídolos são mais astutos que nós, convida-nos a ter a esperteza da serpente com a bondade da pomba.»

 

Uma receita para o desenvolvimento

 

«Neste momento, no centro do nosso sistema económico há um ídolo, e isso não está bem: lutemos todos juntos para que no centro estejam sobretudo a família e as pessoas, que se possa ir por diante sem perder a esperança. A distribuição e a participação na riqueza produzida, a inserção das empresas numa região, a responsabilidade social, a segurança social, a paridade de tratamento salarial entre homem e mulher, a conjugação entre os tempos de trabalho e os tempos de vida, o respeito pelo ambiente, o reconhecimento da importância do ser humano em relação à máquina e o reconhecimento do salário justo, a capacidade de inovação são elementos importantes que mantêm viva a dimensão comunitária de uma empresa. Perseguir um desenvolvimento integral requer atenção aos temas que apontei.»

 

O papel dos empresários

 

«Creio que é importante trabalhar em conjunto para construir o bem comum e um novo humanismo do trabalho, promover um trabalho respeitador da dignidade da pessoa, que não olha apenas para o lucro ou para as exigências produtivas, mas promove uma vida digna, sabendo que o bem das pessoas e o bem da empresa vão a par e passo. Ajudemo-nos a desenvolver a solidariedade e a realizar uma nova ordem económica que não gere mais descartados, enriquecendo o agir económico com a atenção aos pobres e à diminuição das desigualdades. Precisamos de coragem e de criatividade brilhante.»

 

Trabalhar faz bem

 

«A ideia de que o trabalho é só cansaço está bastante espalhada, mas todos experimentamos que não ter um trabalho é muito pior do que trabalhar. Quantas vezes recolhi lágrimas de desespero de pais e mães que deixaram de ter trabalho. Trabalhar faz bem porque está ligado à dignidade da pessoa, à sua capacidade de assumir responsabilidade por si e pelos outros (…). A pessoa que se mantém a si própria e à família com o seu trabalho desenvolve a sua dignidade; o trabalho cria dignidade, os subsídios, quando não estão ligados ao objetivo de voltar a dar trabalho e emprego, criam dependência e desresponsabilizam. Por outro lado, trabalhar tem um alto significado espiritual enquanto é a maneira com a qual nós damos continuidade à criação, respeitando-a e cuidando dela.»

 

Os migrantes que fazem medo

 

«Os migrantes representam hoje um grande desafio para todos. Os pobres em movimento fazem medo especialmente aos povos que vivem no bem-estar. E todavia não há futuro pacífico para a humanidade a não ser no acolhimento da diversidade, na solidariedade, no pensar na humanidade como uma só família. É natural para um cristão reconhecer em cada pessoa Jesus. O próprio Cristo pede-nos para acolher os nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados com os braços bem abertos.»

 

A Europa e a esperança

 

«A Europa precisa de esperança e de futuro. A abertura, impelida pelo vento da esperança, aos novos desafios colocados pelas migrações pode ajudar à construção de um mundo em que não se fale apenas de números ou instituições, mas de pessoas. Entre os migrantes há pessoas à procura de condições para viver e sobreviver. Para estas pessoas que fogem da miséria e da fome, muitos empresários e instituições europeias, a quem não faltam genialidade e coragem, podem empreender percursos de investimento, nos seus países, em formação, da escola ao desenvolvimento de verdadeiros sistemas culturais e, sobretudo, em trabalho.

 

O grito de quem emigra e os demasiados silêncios

 

«As respostas aos pedidos de ajuda, ainda que generosas, talvez não estejam a ser suficientes, e encontramo-nos hoje a chorar milhares de mortes. Houve muitos silêncios. O silêncio do senso comum (…), o nosso silêncio sempre contraposto ao deles. O Senhor promete descanso e libertação a todos os oprimidos do mundo, mas precisa de nós para tornar eficaz a sua promessa. Precisa dos nossos olhos para ver a necessidade dos irmãos e das irmãs. Precisa das nossas mãos para socorrer. Precisa da nossa voz para denunciar as injustiças cometidas no silêncio, por vezes cúmplice, de muitos. Sobretudo, o Senhor precisa do nosso coração para manifestar o amor misericordioso de Deus para com os últimos, os rejeitados, os abandonados, os marginalizados.»

 

Acolher e integrar

 

«Não cessemos de ser testemunhas de esperança, alarguemos os nossos horizontes sem nos consumarmos na preocupação do presente. Tal como é necessário que os migrantes respeitem a cultura e as leis do país que os acolhe para dessa maneira colocar em campo conjuntamente um percurso de integração e para superar todos os medos e inquietações. Confio esta responsabilidade também à prudência dos governos, para que encontrem maneiras partilhadas para dar acolhimento digno a muitos irmãos e irmãs que invocam ajuda. Pode receber-se um certo número de pessoas, sem negligenciar a possibilidade de as integrar e organizar de maneira digna. É necessário ter atenção aos tráficos ilícitos, conscientes de que o acolhimento não é fácil.»

 

 

[Andrea Tornielli | In Vatican Insider]

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