Tolentino Mendonça fala do retiro que vai pregar ao papa

Vaticano 18 fevereiro 2018  •  Tempo de Leitura: 7

Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Antoine de Saint-Exupéry são alguns dos poetas que inspiraram as meditações que o P. José Tolentino Mendonça vai apresentar entre amanhã e sexta-feira, em Ariccia, perto do Vaticano, nos exercícios espirituais quaresmais do papa Francisco e da Cúria Romana.

 

Em entrevista apresentada hoje pela página Vatican News, o primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura evoca também o escritor Tonino Guerra: «É um poeta de que gosto muito, contarei uma pequena poesia sob a forma de história: “contente, mesmo contente/ estive muitas vezes na vida/ mas mais que todas quando/ me libertaram na Alemanha/ mas nunca como na Alemanha/ e me pus a olhar uma borboleta/ sem vontade de a comer”».

 

O tema das periferias, caro ao papa, será também assinalado pelo P. Tolentino: «Cristo era um periférico, uma voz escondida, e depois porque os cristãos são hoje expressão de um cristianismo que já não é central, urbano e ocidental».

 

Também em entrevista publicada na edição deste domingo do jornal do Vaticano, L’Osservatore Romano, o o vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa e consultor do Conselho Pontifício da Cultura, igualmente poeta e escritor, descreve a sua experiência espiritual e literária, ilustrando as linhas de fundo das 10 reflexões que proporá.

 

Como acolheu o convite do papa para pregar os exercícios?

As surpresas de Deus fazem-nos estremecer, mas ao mesmo tempo trazem consigo um convite à confiança, porque sabemos que Deus se revela na nossa fraqueza. O convite do Santo Padre trouxe-me um profundo sentido de humildade, porque sou um simples padre que ensina Novo Testamento numa capital quase periférica da Europa como é Lisboa, responsável por uma pequena comunidade urbana de cristãos, com uma presença no mundo universitário e cultural do meu país. Mas quando lhe disse que eu era um anónimo operário da vinha do Senhor, o papa Francisco exortou-me a partilhar a minha pobreza, com simplicidade e liberdade.

 

Qual é a sua formação teológica e académica?

Estudei Sagrada Escritura do Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, e depois fiz o doutoramento em Teologia Bíblica sobre um texto do Evangelho de Lucas, a cena do encontro entre Jesus e a pecadora em casa de Simão, o fariseu (7, 36-50). Nestes anos tenho trabalhado em alguns temas do cristianismo das origens, quer na tradição dos Sinóticos [Mateus, Marcos, Lucas], quer nos textos de Paulo. Interessa-me muito, por exemplo, o tema da mesa e da refeição. Mas também a construção da identidade cristã no universo Paulino.

 

É também poeta e escritor: qual é a relação entre arte e fé na sua experiência literária?

O escritor Marcel Proust deu-nos da literatura uma das definições mais precisas. Para ele, a literatura é uma lente fotográfica que engrandece a realidade, permitindo-nos aceder-lhe nos seus detalhes e em profundidade. Hoje aborda-se cada vez mais a literatura como um interlocutor importante para o trabalho teológico ou para o percurso espiritual. A literatura envolve-nos na experiência, permite-nos conhecer o mundo à nossa volta e o mundo dentro de nós.

 

Porque escolheu a sede como tema das suas reflexões?

Uma coisa que me preocupa muito concretamente é que a fé não tenha só uma credibilidade racional, mas que seja também credível do ponto de vista antropológico. A fé não é uma ideologia: é uma experiência. A sede é um tema que o mostra bem. A sede não é uma ideia, mas revela a vida na sua realidade. Não é por acaso que a Sagrada Escritura faz da sede um tema recorrente. Por exemplo, mais de uma vez, nos Evangelhos, escutamos Jesus dizer que tem sede. O que significa esta sede? E que coisa pode significar para nós neste tempo concreto da vida da Igreja? A espiritualidade e a mística cristã cultivaram com sabedoria a temática da sede, mas esta para nós pode funcionar também como um útil mapa para abordar o presente.

 

Que respostas se podem dar hoje à sede espiritual do ser humano?

Quando acolhemos verdadeiramente o desafio da sede, percebemos que a coisa mais importante não é propriamente satisfazê-la, mas interpretá-la, aprofundar-lhe o significado, intensificá-la, levá-la mais longe. A sede, por si própria, é um património espiritual. Como dizia a poetisa Emily Dickinson, «a água é ensinada pela sede». Devemos ter a coragem de assumir a sede como mestra nos caminhos da alma.

 

A sede é também uma das pobrezas materiais do ser humano. Qual é a tarefa dos cristãos diante deste desafio?

É uma questão muito importante porque corremos o risco de entender comodamente a sede só em sentido simbólico e espiritual, esquecendo-nos do seu sentido literal. A sede, porém, não nos fecha em nós mesmos. Pelo contrário, coloca-nos perante a pergunta que Deus faz no início: «Onde está o teu irmão?». Há uma sede das periferias que nos obriga a reinventar o significado da fraternidade, não como um conceito, mas como uma prática, um estilo de relação eclesial.

 

Mas sede de Deus e sede do ser humano muitas vezes não coincidem. Como se pode encontrar um ponto de encontro?

A sede do nosso coração precisa de ser purificada e redirecionada. Numa sociedade do consumo, como é aquela típica do mundo ocidental, a sede é muitas vezes reduzida a um gesto consumista. O que hoje percecionamos como um problema grave das nossas sociedades é que a hiperestimulação do desejo está a gerar uma incapacidade de desejar. As pequenas sedes que nos absorvem transformam-se num obstáculo para viver a grande sede: a sede de significado, de verdade, de beleza, de absoluto ou de infinito.

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