Verdade concretas e verdade íntima
As verdades são objetivas, ligam-se aos factos, são racionais e coerentes entre si. De acordo com esta noção comum, a verdade é uma adequação do pensamento à realidade. As ideias serão verdadeiras se reproduzirem com exatidão os factos concretos.
Estas verdades referem-se ao que me é posto diante… o oposto a mim. São meros conteúdos superficiais e nada muda no meu íntimo se alguma delas estiver errada. Aliás, essas verdades são sempre provisórias! Existem enquanto verdade apenas até que o conhecimento evolua e sejam substituídas por outras melhores!
Uma verdade objetiva é sempre impessoal, racional e universal. Todos os homens deveriam ser capazes de as reconhecer e entender… mas será que abstrair algo ou alguém da realidade concreta não é traí-lo? Afinal, se não dou atenção ao que o faz original e único, consigo arrumá-lo num sem número de prateleiras e colocar-lhe muitos rótulos, mas não estarei a pensá-lo na sua verdade profunda.
Nada muda na minha vida íntima se se provar que uma qualquer fórmula dos químicos afinal está errada e há uma melhor. São verdades concretas mas que não dizem nada do que é essencial.
A verdade que me importa é outra. O que me inquieta é a Verdade que existirá no mais profundo de mim e eu desconheço, aquela que existe no mundo e só a mim me diz respeito… tenho feito o que devo? Estarei eu condenado ao arrependimento? Serei feliz? Agora ou depois? Voltarei a sorrir como quando era criança? Chegará quem eu espero há já tanto tempo? Ou, pelo contrário, a Verdade é que ficarei sozinho para sempre? Quem é essa pessoa que devo esperar? Que solidão é essa que devo aprender? A minha esperança é fundada ou apenas uma ilusão? O meu sofrimento tem sentido ou é absurdo?
A essência de cada homem é tão única que escapa a qualquer tipo de verdade objetivo, a nossa identidade profunda é uma espécie de resto, uma falha no sistema. Somos um grão de areia, mas diferente de todos os outros grãos de areia… cada um de nós é uma desarmonia original! O que somos escapa a toda a tentativa de compreensão racional. A nossa existência particular é sublime e absoluta porque é uma desafinação singular e excepcional. Fazemos diferença porque somos uma diferença. Ninguém é apenas mais um.
Os valores, decisões e gestos com que me expresso revelam o que sou. A minha identidade define-se pela linha com que separo o que faço do que não faço. Tudo muda se a minha verdade, os meus valores se alterarem, se tomar uma decisão diferente ou se trocar um gesto por outro. Tudo. Mudo eu e o meu mundo. Muda a Verdade. Sim, a Verdade está viva, ela é a própria vida que me anima… dá luz aos meus pensamentos e calor às minhas emoções. Sem Verdade não há nada… um vazio… um abismo escuro e frio.
Este pedaço de tempo e espaço, este mundo íntimo que cada um de nós é, vale um universo. Não porque sejamos melhores do que ninguém, mas tão-só porque somos únicos… tão puros quanta a autenticidade de que formos capazes.
A autoridade de cada um de nós resulta de sermos autores e protagonistas da Verdade da nossa vida. A responsabilidade é enorme, porque o risco é infinito… tudo paira sobre trevas, porque se pode perder a qualquer momento. Não sou o fundamento de mim próprio. Nem o meu próprio fim…
O dom da minha existência é tão incompreensível quanto concreto. Simples e admirável. Excelente e perfeito. Sublime.
A minha existência, a minha vida, a vida que sou, a vida que sinto que quer ser vivida em mim e através de mim… não é uma verdade, é a Verdade. Uma bondade que se sente.
Só o coração e a fé se podem aproximar do que fica depois de a racionalidade retirar tudo o que pode ser pensado, compreendido e arrumado. Sou o que resta desse processo. Sou o resto. Tão mais puro quantas superficialidades tiver sido capaz de deitar fora. Sou este quê irracional. Esta divergência ímpar… esta migalha de vida que quer viver e ser feliz. Plena.
O mais profundo e importante do mundo não se pode analisar de forma objetiva. A Verdade é íntima. Ainda mais íntima do que a morte em mim. Essa que sem uma palavra me ensina tanto. O nada ameaça-me a cada instante… o ser constrói-se contra o nada. Viver é aceitar o desafio supremo da existência: construir uma ponte de sentido por cima do abismo dos absurdos deste mundo. Um caminho que se faz pelas escolhas diante de um nevoeiro que não me deixa ver senão a luz que levo dentro de mim. Aquela que me constrói… à medida que a descubro… como princípio, caminho e fim.
[Ilustração de Carlos Ribeiro]