O turista do século XXI
Na aurora dos tempos, a viagem era uma deslocação funcional e ligada à luta pela sobrevivência
Mesmo a paisagem natural deve a sua existência a incessantes viagens que não supomos. O paisagista Gilles Clément ajuda-nos a ver, por exemplo, como todos os jardins são espaços em movimento. As plantas, que parecem signos imóveis, na verdade viajam. As suas sementes foram trazidas por ventos, por correntes marítimas, chegaram na sola das sandálias de um viajante descuidado, na pele dos animais. Foram introduzidas de forma deliberada ou puramente casual. O metrosídero provém da Nova Zelândia. A tipuana e o jacarandá da América do Sul. A árvore da borracha deriva de uma vasta região que se estende desde o subcontinente indiano até à Malásia e à Indonésia. A estrelícia tem origem na África do Sul. Se pensarmos bem, qualquer inofensivo jardim é, no fundo, uma espécie de mapa-múndi.
Ainda assim, quando pensamos na ideia de viagem, pensamo-la fundamentalmente como atividade humana. Pode dizer-se que a primeira viagem foi realizada pelo primeiro homem que habitou a terra, de tal modo viajar se tornou sinónimo deste homo viator que, há milhares e milhares de anos, somos. Sem dúvida que na aurora dos tempos a viagem era uma deslocação funcional e ligada à luta pela sobrevivência. O homem deixava o seu refúgio e atravessava o mundo em busca de alimento e de condições mais estáveis. Mas é impossível que o caçador primitivo não sentisse espanto e prazer com a pura descoberta da terra. Ou que o pastor nas suas deambulações sazonais, em busca de pasto, não se afeiçoasse à suavidade ou à beleza de uns lugares mais do que doutros. Ou que aqueles que desenharam pequenas figuras nas paredes das grutas onde habitavam não o fizessem para assinalar também aquilo que lhes enchia os olhos e o coração, mesmo que o seu assombro não estivesse isento de incompreensão e terror. Onde existe o ser humano, existe a memória e a paixão da viagem.
Contudo, cada época reconfigura, a seu modo, o ideal de viagem. Penso, por exemplo, na distinção entre turista e viajante ou na diferenciação entre este e o peregrino. O escritor Paul Bowles dizia que o turista e o viajante se distinguem pela experiência que fazem do tempo, apressada a do turista, lenta a do viajante: “Enquanto o turista volta a correr para casa ao cabo de semanas ou meses, o viajante não pertence a um lugar mais do que a outro”. Distinção semelhante se fazia entre a viagem profana de qualquer viajante, espraiando o seu deambular pelo mundo, mas sem um concreto objetivo de transformação pessoal, e a itinerância levada a cabo por um peregrino, que investe a sua viagem de um sentido sagrado e transformante. Hoje, porém, o que constatamos é que essas distinções se atenuaram e que cada viajante, mesmo acidental, tem a expectativa de que, de uma forma ou de outra, a sua viagem represente um ato humano total: que uma viagem de negócios permita também um contacto cultural; que uma viagem de lazer acrescente alguma coisa de significativo ao conhecimento; que uma excursão massificada viabilize uma qualquer singularidade inesquecível. Falando em termos antropológicos a viagem contemporânea tornou-se uma forma de exposição à procura de sentido. Será isso possível?
Custa, obviamente, aproximar o turista do século XXI a Marco Polo. Ou comparar, sem ironia, as suas motivações com as do patriarca Abraão ou do monge chinês Xuangzang, que viveu no século VII a.C. e foi um dos primeiros humanos a escrever um relato de viagem. Mas não deixa de ser verdade que os milhões de humanos que se apinham nos aeroportos em direção aos chamados “destinos turísticos” partilham um património simbólico com os verdadeiros viajantes. E talvez valesse a pena partir mais vezes daí.
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2257 | 30/01/16]