Funeral em vida, por Tolentino Mendonça
A infelicidade desta designação, parece nem ao de leve ferir os tímpanos dos promotores da iniciativa comercial
Um insólito pacote de serviços é atualmente promovido, com todo o zelo, por agências funerárias. A infelicidade da sua designação, “funeral em vida”, parece nem ao de leve ferir os tímpanos dos promotores da iniciativa comercial, que a têm divulgado em spots radiofónicos tão compungidos que a primeira dúvida que assalta os ouvintes é se não se tratará de flagrante humor negro. Infelizmente, o desastre da designação encontrada, e do inquietante paleio associado, não é o desastre maior em jogo, pois esse não respeita, de facto, tanto à débil imaginação do marketing das empresas, quanto à incerteza ética das nossas sociedades. O “funeral em vida” explica ter sido inventado para responder a duas questões prementes: 1) garantir que todo o processo exequial se desenvolverá segundo as decisões (a propaganda comercial escreve “segundo os desejos”) do futuro defunto; 2) e garantir que, num momento tão sensível como a morte de um familiar próximo, os entes queridos serão poupados a “preocupações desnecessárias”, nomeadamente de burocracias, de custos e supõe-se que de outras.
Já não bastava a morte se ter tornado um tabu cultural, sobre o qual as convenções nos interditam de conversar abertamente e de pensar mais de dois segundos. Torturamos a linguagem para que ela alcance um grau de abstração e arredondamento tais que a morte desliza para uma neutralidade anónima, sem direitos de reconhecimento nem de expressão. Para não falar do rigoroso interdito teleológico que, numa sociedade que absolutiza o triunfo da banal instantaneidade, nos torna, a nós humanos, animais de consumo, mas nos priva da consumação, isto é, da realização plena deste mistério de vida e de morte que somos. Ao contrário da declaração imensa que Jesus faz no alto da cruz, “tudo está consumado” (Jo 19,30), nós só vamos conseguindo dizer que “tudo está consumido”.
Já não bastava a morte ser tacitamente ocultada, não a extraordinária morte logo transcrita como espetáculo pela vertigem mediática, mas a morte ordinária, a morte vizinha, a nossa própria morte. Já não bastava nos faltarem palavras, imagens ou sabedoria para vivermos a morte não apenas como um incomunicável evento privado, mas como um destino comum e partilhado. Já não bastava a distância a que estamos daquela prece que os versos de Rainer Maria Rilke deixaram registada: “Dá, Senhor, a cada um a sua própria morte,/uma morte nascida da sua própria vida,/que lhe deu amor, sentido e aflição”. A tendência atual (e que é bem mais do que uma tendência comercial) é a de assumir uma remoção completa. A morte é uma “preocupação desnecessária”, que devemos, prudentemente, não fazer pesar sobre os outros, mesmo que isso implique não apenas um funeral em vida, mas uma morte em vida, isto é, um viver como se estivéssemos já mortos uns para os outros, porque desconhecemos e somos desconhecidos. Mas no dia em que o mandamento de “sepultar dignamente os mortos” for removido dos deveres dos filhos, dos companheiros, dos irmãos, dos amigos e antecipado para as obrigações que cada um deve prever em relação a si mesmo, a nossa humanidade ficará irremediavelmente mais pobre. Por alguma razão a história da civilização construiu-se na margem contrária à desta enxurrada dominante. Pense-se em Antígona, a heroína de Sófocles, que se levanta desamparada contra os poderes da cidade para não desobedecer a uma honra mais antiga, ao cumprimento do dever sagrado que é sepultar o seu irmão. Porque deveres desses, como explica corajosamente ao déspota que a interpela, “não são de agora, nem de ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe como surgiram”.
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2244 | 17/10/15 | Imagem: Peter Paul Rubens]
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2242 | 17/10/15 | Imagem: cocoparisienne]