A Bíblia é um magma demasiado complexo para teólogos e escritores
Eu sou dos que consideram uma grande fortuna quando um escritor se interessa pela Bíblia. A história da literatura documenta amplamente o benefício. E não só quando pensamos em casos óbvios, de Dante a Flannery O’Connor. Lembro-me de uma belíssima frase de José Saramago quando editou, não sem polémica, o seu romance “Caim”: “A mim, a Bíblia permitiu-me escrever o que não estava dito.” O que é absolutamente verdade. Saramago é uma espécie de narrador bíblico e, surpreendentemente ou não, em mais sentidos do que os expectáveis, pois mesmo quando ideologicamente problematiza a revelação bíblica deixa-se contaminar pelo seu léxico, enamora-se do seu ritmo, retrabalha incessantemente as suas imagens. E com isto não é só a literatura que ganha, mas também a história da exegese, ela que é um campo de estudo bem mais irrequieto e atento a contributos transdisciplinares do que parece. Basta ver como saberes tão distintos – da antropologia à história, da arqueologia à teoria literária – são convocados como ferramentas hermenêuticas pertinentes na aventura que representa o contacto com essa fascinante biblioteca que a Bíblia é. Numa obra maior sobre a relação entre Bíblia e Literatura (The Great Code: The Bible and Literature, 1981), o canadiano Northrop Frye defende essa circularidade virtuosa. Por um lado, reconhece que os elementos bíblicos constituíram em grande medida o imaginário no qual se inscreveu com regularidade a literatura ocidental até ao século XVIII e no qual ainda hoje frequentemente se inscreve. Mas afirma igualmente, por outro, que a leitura da Bíblia se reforça em densidade quando é revisitada como corpus literário e não apenas como corpus teológico ou histórico. E para demonstrá-lo dedica 300 páginas especiosas à linguagem bíblica, páginas cujo valor nenhum estudioso da Bíblia pode desconsiderar. A Bíblia é escritura sagrada, mas precisamente por isso é importante velar para que o adjetivo (sagrada) não oculte o substantivo (a escritura) e vice-versa. Também aqui a tensão é criadora.
A Bíblia é um magma demasiado complexo para teólogos e escritores que se deixam tentar por conclusões rápidas, em ambos os sentidos. Tanto as abordagens crentes fundamentalistas como as que se formulam partindo de um historicismo positivista acabam por enfermar da mesma naïveté face ao texto.
Tome-se o exemplo dos evangelhos no Novo Testamento cristão. A sua leitura e aprofundamento atuais são inseparáveis não só da operação ligada à sua escrita (que se deve datar entre os anos 70 e 100 da nossa era), mas de duas etapas anteriores: o anúncio oral feito historicamente por Jesus durante a sua vida pública (anos 28 a 30) e o anúncio também oral, embora já com prováveis fragmentos escritos, da Igreja primitiva sobre Jesus (anos 30 a 70). Neste sentido a fé precede os Evangelhos. E é a fé que, ao transmitir como notícia o acontecimento que Jesus incarna, descobre uma boa-nova. O dado primário no cristianismo radica-se, assim, na sua dimensão originária, viva e vital. A sua tradição escrita não pretendeu ser um puro documento objetivo separado do mundo interior dos seus transmissores e destinatários.
Penso que o entendeu bem George Steiner, quando escreve na sua obra “O Silêncio dos Livros”: “Parece-me que não avaliamos ainda como devíamos a incrível originalidade e o carácter absolutamente inédito de que se terá revestido o projeto evangélico... A genialidade dos evangelhos resulta da tensão extrema entre uma oralidade substancial e uma escrita performativa infinitamente aberta.”
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2254 | 09/01/16]