Do Eu Solitário ao Nós Solidário, Livro da Semana

Não têm sido muitos os que, de um modo bem fundamentado e ao mesmo tempo com coragem, se dedicam a ler o tempo presente à luz do Evangelho. Fernando Ventura é um destes poucos. Frade Capuchinho, nascido em Matosinhos em 1959, tem dedicado o seu ministério ao aprofundamento e divulgação das Escrituras. Recusa a tradicional e, infelizmente, ainda muito comum, noção de que o único papel da Igreja é o da assistência social, reforçando que esta só tem sentido a par do anúncio e da denúncia profética das situações de injustiça – talvez por isso se explique o amplo espaço que Fernando Ventura encontra nos meios de comunicação social. Publicado originalmente em 2011 e já com 5 edições, o seu livro «Do Eu Solitário ao Nós Solidário» (escrito em conjunto com o jornalista Joaquim Franco), é um conjunto de conversas desenvolvidas a partir desta leitura cristã da realidade – e, claro, da crise. Deixo um excerto e índice, de um livro que recomendo vivamente. (Do mesmo autor está publicado também o livro «Roteiro de Leitura da Bíblia» de que conto partilhar um excerto brevemente). 

 

«Diz-se que um pessimista é só um optimista bem informado. Sinceramente, procuro não ser assim. Procuro, pelo menos tento, ser um optimista informado. Procuro, ou pelo menos tento, não embarcar nem levar ninguém a embarcar em ilusões sebastianistas, alienadoras da esperança e desresponsabilizadoras da intervenção pessoal de cada um. Se alguma coisa me move no meu ser relacional, é esta luta sem quartel contra a solidão solteirona que nos mata e atrofia e que é causa de muitos dos males sociais, políticos, religiosos, morais, económicos, políticos, e de tudo o mais que quiseres, que nos afligem.

Trago comigo esta preocupação no tempo que corre e do tempo que corre. Não correr atrás de ninguém, por mais messiânica que seja a sua mensagem; tento o mais que posso não alienar a minha responsabilidade pessoal de transformação da história, pelo menos da minha história pessoal, dentro do espaço vital em que me toca viver. Sou responsável pelo mundo a construir. Não serei nunca capaz de o construir sozinho. 

Enquanto ser histórico, sou ponto de chegada de todas as experiências de vida e de fé que me precederam e sou, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, ponto de partida para novas experiências de vida e novas experiências de fé que me hão-de suceder. Não sou um fim em mim próprio, nem sou o princípio absoluto de tudo, mas sou uma continuidade histórica da memória e do sonho, das memórias e dos sonhos de tantas histórias e de tantas vidas sonhadas e vividas antes de mim.

Por isso, sou responsável, pelo menos pelo “metro quadrado” que ocupo e dentro do qual procuro ser responsável por aqueles que comigo partilham esse mesmo espaço. Com esses, procuro e quero fazer a revolução que cada vez mais se torna uma urgência urgente a tornar realidade. A única revolução que será capaz de derrotar todas as formas de morte, ou seja, a revolução revolucionária dos não violentos, dos que acreditam que é possível dar a volta e criar novos paradigmas de ser e de estar no mundo, em solidariedade e em subsidiariedade da e na construção e vivência de relações novas e redimidas, sem senhores nem escravos, sem mandantes nem mandados, sem Cains que matam, destroem e dividem só para poder reinar e poder fazer florescer as suas máfias de influências cleptocráticas. São as cleptocracias que nos desgovernam. São os Cains que continuam a matar os Abéis…

A factura está aqui, diante dos olhos de todos, toda inteira para ser paga, pelos mesmos, pelos de sempre, pelos muitos que continuam a ter de sofrer muito, para que poucos, muito poucos, não tenham de se preocupar com nada. Estes, que ainda hoje conseguem navegar por cima das dificuldades do comum dos mortais, são os mesmos que nos disseram quer a nível individual, quer a nível nacional que podíamos e até deviamos continuar a viver muito acima das nossas possibilidades, porque assim é que tinha de ser, porque só com um consumo desenfreado, só com o consumo pelo consumo, muito acima das nossas possibilidades reais, era possível fazer avançar o mundo, porque esses mesmos só assim conseguiam continuar a fazer funcionar a sua máquina de construção de riqueza à custa da pobreza alheia.

Venderam-nos uma utopia. Nós comprámos um sonho de felicidade fácil. E, de repente, acordámos para um pesadelo; agora, era preciso pagar a crise, pagar o crédito, pagar a factura. Não há almoços grátis, ninguém dá nada a ninguém, a factura estava ali, para ser paga… se faz favor!»

 

Índice

1. Apocalipses nas Crises da História | 2. Eu, o outro e a auto-realização | 3. Da esquizofrenia religiosa à religião como princípio de humanidade | 4. O lugar do homem e da humanidade | 5. O «Ser» e o «Ter» da pobreza | 6. Do «pecado» à lucidez | 7. O que somos e onde chegámos? | 8. Quem tem medo de pensar? | 9. Deus do sensível e a estética de Deus | 10. Criação ou descriação? | 11. Religião, tensão e guerra | 12. Religião, ética e política | 13. Laicidade ou sociedade sem Deus? | 14. Encontros acidentais entre religiosos | 15. Jihad e Metanóia | 16. «Uma barraca com um submarino à porta» | 17. Subsídio-dependência ou subsidiariedade | 18. Quantos pobres são necessários para fazer um rico? | 19. Ressuscitar as palavras mortas | 20. Contrastes religiosos | 21. Francisco de Assis | 22. Jesus de Nazaré

Fernando Ventura, Joaquim Franco,

«Do Eu Solitário ao Nós Solidário».

Ed. Verso de Kapa, 5ª edição, Lisboa 2011, 157 págs.

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