A arte de fazer a alegria, por Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos
Tomemos esta afirmação de João Batista para nos ajudar a aprofundar a palavra da liturgia deste domingo: “No meio de vós está Alguém que não conheceis.” É uma frase enigmática, um pouco surpreendente, desconcertante. Mas, ao mesmo tempo, é uma chamada de atenção para a nossa vida.
“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Porventura, a parte mais significativa das nossas vidas está submersa à nossa própria consciência. Está lá, mas nós não vemos. Está connosco, mas não nos damos conta, já está no meio de nós mas ainda não fazemos disso o motivo da nossa esperança, o motivo da nossa alegria.
“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Se à nossa vida falta, tantas vezes, aquela porção de alegria que a tornaria alguma coisa que valha realmente a pena aos nossos olhos, aos olhos dos outros, se muitas vezes é tão mais fácil nos afundarmos na lamentação, se tantas vezes olhamos obsessivamente para o copo meio vazio e não para aquilo que já temos, para o que já está connosco, para aquilo que já nos é dado, é precisamente por isto: porque está connosco, no meio de nós, isto é, cravado no meio do nosso coração, da nossa vida, Alguém que nós não conhecemos, ou vivemos não fazendo caso, ou vivemos como se não O conhecêssemos.
“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Neste Domingo da Alegria, o grande desafio é descobrir aquilo que já está colocado em nós, aquilo que nos habita. Porque nós só seremos discípulos e discípulas da alegria, só rejubilaremos, só sentiremos que as nossas entranhas rejubilam da alegria, como diz o profeta Isaías a propósito do Messias, se tomarmos consciência daquilo que já nos habita, do que já temos, daquilo que já está connosco.
O que exaspera a nossa vida é o sentimento de falta, de nunca conseguirmos. Falta sempre alguma coisa, nunca nada é perfeito, nunca nada está acabado, nunca nada está resolvido. Falta-nos sempre um instrumento: se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo da nascente buscar a água que nos dessedente. Falta-nos sempre alguma coisa.
Nessa narrativa espiritual tão intensa que é O Principezinho, de Saint-Exupéry, ele explica que não nos falta nada. Não nos falta nada. Já está tudo. Cada um de nós tem tudo o que precisa para experimentar hoje, no aqui e no agora, a alegria. Temos tudo o que precisamos.
“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” O nosso problema em relação à alegria não é de a inventarmos, de a buscarmos, de precisarmos de descobri-la sabe-se lá onde. Não, é um problema de conhecimento, é um problema de olhar. Olharmos para a vida, olharmos para o que somos, olharmos para o que nos rodeia de uma outra forma, com um coração agradecido, com um coração capaz de perceber aquilo que o habita.
No texto do Profeta Isaías que hoje lemos e que Jesus vai ler na sinagoga da sua terra, Nazaré, diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar, para dar vista aos cegos, para libertar os prisioneiros, para anunciar um ano da graça.” E depois disto, diz: “Por isso eu me alegro no Senhor.” Então, a alegria não é uma coisa externa a nós nem é uma invenção que cada um de nós é capaz de fazer: a alegria, antes de tudo, é um dom, um dom que nós recebemos. É porque o Espírito nos habita que nós somos capazes da alegria. É porque esse dom de Deus é derramado em nós e nos dá uma capacidade que nós não temos! Mas é essa capacidade de Deus em nós e é na medida em que nós reconhecemos o dom de Deus na nossa vida, em que reconhecemos aquilo ou Aquele alguém que já está no meio de nós, que nós somos capazes da alegria.
É muito belo o discurso, esta conversa de João Batista com as autoridades de Jerusalém:
“-Tu és o Messias?
– Não.
-Tu és Elias?
– Não.
-Tu és o profeta esperado?
-Não.”
Nós, muitas vezes, pensamos que a alegria é uma espécie de consequência de sermos, ou de conseguirmos, ou de obtermos. João Batista não é nada: não é o Messias, não é Elias, não é o profeta. Isto é, não tem nenhuma tentação messiânica, não acha que é o que não é, não se inspira nele próprio.
“- Não sou. Não sou. Não sou.
– Então porque é que batizas, se não és?
– Eu batizo com água, eu preparo o caminho para alguém que virá depois de mim. E eu não sou digno desse que virá depois de mim.”
Que modelo maravilhoso de vida, que modelo maravilhoso de vida para nós. Uma máquina de infelicidade é vivermos cheios de nós, vivermos angustiados porque não somos, porque não conseguimos, porque não somos o Messias, porque não resolvemos tudo, porque não, porque não. Só quando morremos para esse tipo de ambição, só quando deixamos de lado essas exigências exageradas e perturbadas do nosso eu é que verdadeiramente começamos um caminho espiritual. Um verdadeiro caminho para a alegria começa por dizer:
“ – Eu não sou. Eu não sou o Messias, eu não sou a fábrica da alegria, eu não tenho a solução mágica, eu não consigo. Eu não.
– Mas então o que é que tu fazes?
Eu ponho-me como uma sentinela, eu coloco-me na iminência, eu preparo os corações, eu uso água, não uso fogo.”
Isto é: “Eu uso o que posso, eu uso o quotidiano, eu uso os instrumentos da vida, eu uso a sua banalidade, a vida pequena, eu batizo com água, mas sei que sou uma sentinela da aurora, sei que estou à espera dum Senhor, sei que estou à espera do grande Rei. E, nesse sentido, eu não valho por mim mesmo, eu valho por aquilo de que estou à espera, eu valho pela porção de futuro que me habita. A minha vida não é apenas o que eu vivi. Às vezes começamos a fazer contas ao que vivemos e é uma solidão muito grande.
Ainda ontem encontrei uma pessoa, que veio ter comigo: “Eu estou numa solidão enorme, olho para a minha vida e acho que falhei em toda a linha.” E eu disse: “Bem-vindo ao clube, meu irmão, porque eu estou exatamente como tu.”
O que é que dá sentido à vida? Não é o que fizemos. Só um ingénuo fica completamente feliz com aquilo que fez e não percebe que devia ter feito o triplo, cem vezes mais. Então o que é que nos redime? O que é que nos salva? O que é que nos enche o coração? É colocarmo-nos na fronteira de um futuro que seja maior do que nós. É percebermos que somos servos daquele que virá, que o momento mais importante não foi este presente, mas é este presente a trabalhar pela tensão de um futuro muito maior.
“Eu batizo com água, mas virá Aquele que batizará com o Espírito Santo e com o fogo.” E, nesse sentido, nós somos servidores do futuro, estamos a antecipar o futuro, fazemos pequenas coisas, sinalizamos com os nossos gestos de amor, de criatividade, sinalizamos Aquele que virá. E quando nos colocamos assim, a vida torna-se outra coisa.
Ainda sobre a alegria, lembro-me de uma coisa que li e uma coisa que ouvi. Uma coisa que ouvi foi o Miguel Esteves Cardoso a dizer: “O maior pecado é não nos alegrarmos com as alegrias dos outros.” Isso fez-me pensar porque, mesmo se facilmente choramos com as dores dos outros, é mais difícil alegrarmo-nos com as alegrias dos outros. E isso pede de nós um trabalho de habitar esta fronteira, de não querer ser, mas habitar esta fronteira esperando Aquele que será maior do que nós. Pede uma humildade muito grande e uma solidariedade pela positiva. Porque é muito importante que sejamos solidários nos momentos difíceis, mas é muito importante ser solidário nos momentos de alegria, nos momentos de êxito, nos momentos de sucesso, alegrarmo-nos com as alegrias dos outros.
E há outra coisa que Chesterton ensina tão bem. Ele diz: “O cristão é o mais alegre dos homens.” E é o mais alegre porquê? O cristão, em relação às pequenas coisas da vida, até pode ser triste, e pode viver uma existência triste mas, em relação às coisas grandes da vida, é habitado por uma alegria que nada derruba. Ele diz: “Aqueles que não acreditam até podem viver uma vida onde se alegram, mas, quando pensam na eternidade, quando pensam na morte, o seu coração inevitavelmente enlutece, entristece.” Por isso, a nossa alegria também não é deste mundo, e precisamos de saber isso, perceber o que é que isso significa na nossa vida porque, porventura, a coisa mais importante é nos sentirmos nómadas, nos sentirmos itinerantes, nos sentirmos em viagem.
Quando pedem a João Batista para explicar o que é que ele é – “Então o que é que tu és?” –, Ele responde: “Eu sou a voz do que clama no deserto, endireitai o caminhos do Senhor.” É esta a nossa tarefa: nós somos chamados a endireitar a via do Senhor, aquela via que atravessa o deserto, e a fazer disso a razão da nossa alegria.”
Queridos irmãs e irmãos, sintamo-nos responsáveis pela alegria. Estamos perto da refeição mais importante do ano nas nossas famílias. Fazemos viagens, vem gente de longe, estamos todos à volta. E, claro, é preciso ter o que se coma, ter as coisas boas que assinalam, pela tradição, a memória, a história da família, as coisas da nossa infância. E esse reencontro é tão estruturante, é tão importante. Mas não é apenas a mesa, a decoração, que tem de ser a mais bela. E não é o conteúdo que tem de ser o mais saboroso, ainda não é isso. O importante é que a alegria circule de coração a coração. Nós temos de ter esta arte, esta capacidade, porque uma mesa de Natal também pode ser uma máquina de fazer solidão, de ampliar a solidão, de ampliar o desencontro. E, nesse sentido, é-nos confiada esta tarefa de aprender a fazer a alegria, como com duas pedras se faz o fogo, com dois corações se faz a alegria. Aos cristãos é pedida esta arte de fazer a alegria. Se pudermos juntar outras artes, tanto melhor, mas não deixemos que esta arte, que é uma arte profundamente espiritual, esteja ausente da nossa vida.
[Por José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento, ©Capelo do Rato]