Ver demais pode causar cegueira

Qualquer um pode ser feliz,
mas tornar-se infeliz requer aprendizagem.

Paul Watzlawick



A maior das nossas certezas pode não ser uma verdade! Há critérios para aferirmos a veracidade de algo que são quase inquestionáveis, e “ver” insere-se  nesse restrito leque. Sobre a audição ou o tacto ainda colocamos algumas dúvidas, mas quando vemos, ou melhor, estamos convencidos que vemos algo, é quase uma ofensa alguém duvidar dessa verdade.

 

Qualquer estratégia de marketing, por mais simples que seja, sabe que a base do seu sucesso reside na imagem que criam nas pessoas, naquilo que conseguem fazer com que as pessoas vejam... O enorme desenvolvimento tecnológico e científico possibilitou a criação de uma parafernália de gadgets que permitiram termos acesso permanente a comunicação através de imagem, por um lado, e nem sequer prestarmos atenção ao que exigir mais concentração que uma simples imagem ou um vídeo, por outro.

 

Da mesma maneira que confundimos a evolução do conhecimento em detrimento  do crescimento do saber, ficamos ofuscados pela possibilidade de tudo ver e criamos a certeza que tudo pode ser visto. Será?

 

Seja o secret story, seja o big brother, seja uma mera notícia “cor de rosa”, o fascínio de ver tudo para ficar a saber tudo exerce imenso poder sobre a natural curiosidade humana. Mas cada história tem sempre três versões, como dizia na crónica da última semana, a minha, a do outro e a verdadeira. Quando nos esquecemos da relatividade de algumas das nossas certezas, criamos o espaço necessário para o conflito nascer. Conflito com os outros, que também sabem o que viram e têm as suas certezas e, não menos grave, conflito connosco.

 

Esquecemos o outro com quem nos relacionamos, retiramo-lo do centro da relação, diminuímo-lo na sua dignidade, e centramo-nos obcecadamente no que vimos, defendendo até para lá do racional o nosso ponto de vista.

 

Quando passamos a escalpelar algo no mais íntimo de nós, na tentativa de perceber e procurar uma solução para uma situação que nos preocupa e faz sofrer, dissecando uma, duas, três, e mais vezes a mesma hipótese, num ciclo vicioso, na tentativa de ver melhor, de ver mais, de procurar  ver a solução onde reside apenas o problema... Perdemos a noção do todo, ficamos cegos nessa tentativa de tudo ver, não vemos nada mais para além do que nos preocupa.

 

O objetivo inicial, procurar uma solução, facilmente é substituído pela ânsia de ver mais, demais. Qual borboleta à volta de uma chama ou uma espécie de fénix, perdemos a noção do perigo desta atitude, do risco desta obsessão, não nos apercebemos que, não só não encontrámos as respostas procuradas, como criamos um ciclo irracional que conduz inevitavelmente à infelicidade.
 
Se a infelicidade pode resultar de um processo quase autodestrutivo, ser feliz é definitivamente uma arte que se aprende, que se treina e, acima de tudo, que se constrói e vive, momento a momento, com a humildade de quem sabe receber da vida tudo o que ela lhe dá e não pretende encará-la orgulhosamente só, mas se abre generosamente ao outro com quem caminha e a Deus  fonte e sentido da vida.

 

[Fotografia: ©Bruno Schlumberger]

Paulo V. Carvalho

Cronista.

Licenciado em Teologia. Pós Graduação em doutrina e ética social. Mestrado em Informática Educacional. Especialização em Educação Especial. Professor. Gosta de desafios.

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