Somos feitos de saudade
Não sei se a saudade nasceu connosco ou se nos fez nascer como somos. Com saudades de tudo. A saudade é, na minha opinião, a palavra mais bonita que existe. E o que está dentro dela é bem capaz de ser tão bonito como ela. Fica bem na boca quando a dizemos. Não precisamos de explicar nem de enfeitar muito o discurso com argumentos. Dizemos saudade e quem nos ouve entende. Sabe. Adivinha. É uma visita sempre adiada, a saudade. Uma dor pequenina e mal nascida que quase não é dor. Sente-se debaixo da pele como um fiozinho de vento ou uma pontinha de estrela. A saudade nunca desaparece porque há sempre dias que já não voltam e pessoas que já não voltam. Tem tamanho para caber numa mão e impacto para dar voltas à vida. Saudade é saber que, agora, temos que contentar-nos com o que sobrou dos momentos que vivemos e das pessoas que amámos. É fechar os olhos e enfrentar baixinho que já passou. Se não tivesse passado não haveria espaço para a saudade. Somos feitos de saudade e de saudades. Daquele dia que não queríamos que terminasse. Daquela pessoa que nos transformou e partiu demasiado cedo. Da comida que comíamos na nossa infância. Do sol do nosso país. Do cheiro da nossa casa. Dos sítios onde fomos casa para os outros e que tivemos que deixar. Das vezes em que soubemos o que fazer. Dos dias em que tínhamos tudo e não nos faltava nada. Dos dias em que tínhamos mais certezas. Das noites em que as estrelas brilhavam mais e pareciam indicar-nos o caminho certo. Mas a saudade também tem picos. E, às vezes, fere-nos demasiado. E passeia pelas nossas veias como se nunca tivéssemos sentido nenhuma outra coisa. Ri-se de nós. Atravessa-nos e faz-nos sonhar menos. Outras vezes é a saudade que nos faz regressar ao passado e resgatá-lo. Fazer dele castelo para as batalhas do futuro. Faz-nos voltar ao que nos faz falta e a quem nos faz falta. No entanto, a saudade ilude-nos e leva-nos a acreditar que o que vamos encontrar no regresso é exatamente o mesmo. Não é. A vida não se repete e não há momentos iguais. Mesmo assim, a nossa sede de recuperar os dias que existiam antes da saudade, acalma-nos e leva-nos ao sítio certo. Somos feitos de saudade e se alguém nos pedir para a descrever, não sei se saberemos. Sabemos, sim, o que nos causa esse sentimento morno que parece fazer caminho em nós durante toda a nossa vida.
Somos feitos de saudades. E ainda bem.
Cronista
Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)