Queres ser a minha mãe?

África. Moçambique. Mochila às costas. Dentro da mochila saltitavam os meus medos todos. Por momentos, pensei que levariam a melhor. Que levariam o melhor de mim. Arrumei o meu corpo dentro de uma espécie de carrinha que levava cinquenta pessoas. Era uma carrinha que devia levar nove pessoas. Nesse dia e nesse segundo senti que a morte me cumprimentava. Apertava-me a mão como quem já me conhecia. Era impossível sobreviver a uma viagem de cinco minutos dentro daquele inferno. Mas fizemos uma viagem de vinte minutos. Nem um segundo a menos. O meu corpo mantinha-se ali mas a minha alma tinha fugido há muito. Não sei se sabiam mas a alma também tem instinto de sobrevivência. Quando me foi permitido descer do veículo que me tinha levado até às portas da lixeira, senti-me livre outra vez. Mas estava longe de saber o que me aconteceria depois. O grupo de missionários que ali estava tinha decidido ir visitar um orfanato. “É lá para os lados da lixeira” Diziam eles. Eu estava longe de saber que o orfanato era praticamente DENTRO da lixeira. Tudo era lixo em redor. Quanto mais os meus olhos procuravam a luz do sol, mais esta se esbatia por detrás do fumo. A lixeira arde permanentemente. E nem que arda durante uma eternidade e meia será possível que desapareça. As crianças do orfanato respiram este cheiro durante todo o dia. Durante a vida toda, se for preciso. São crianças de ninguém. As portas do orfanato eram azuis como o céu que estava algures escondido pelo fumo e pela miséria. Abriram-se para que entrássemos. Antes de nos deixarem conhecer as crianças, avisaram-nos que os seus corações pequeninos transbordavam de carência. De falta de tudo. Era preciso ter algum cuidado. Não fazer promessas, não oferecer nada que não pudéssemos dar a todos. Eram muitos. Quando nos viram, correram desenfreadamente. Como abelhinhas desorientadas. Apertaram-nos as mãos, deitaram-se aos nossos pés, amassaram-nos com mimos, beliscavam a nossa pele para terem a certeza de que éramos de verdade. Os beijinhos eram dentadas com sede de amor. Gritavam, choravam, riam, rodopiavam, faziam tudo ao mesmo tempo e a uma velocidade assustadora. Queriam agarrar-nos para sempre. Seguravam-nos as pernas como polvos que encontraram porto seguro. Enquanto pairávamos por ali, a lixeira continuava a arder. O cheiro embriagou-me. Anoiteceu-me. Eram três da tarde e eu estava de noite. Houve uma menina que se aproximou e disse: “Queres ser a minha mãe?” Eu fiquei a olhar para ela, na esperança que o Céu me enviasse uma sugestão de resposta à pergunta impossível. Sorri, agarrei-a, esmaguei-a contra mim num abraço apertado e semeei-lhe beijinhos na cara toda. Foi a pergunta mais absurda que já me fizeram. A mais difícil, também. Mas durante uma hora deixei que a minha presença fosse a resposta que aquelas crianças precisavam. Se eles não eram de ninguém podiam muito bem ser minhas. E foram.

Marta Arrais

Cronista

Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail