Quem diz a verdade merece castigo
Dizer a verdade não é igual para todos. Há quem se convença a si mesmo que nunca mentiu nem seria capaz de o fazer. E esta é já a sua primeira mentira. A tua primeira mentira. Seria maravilhoso que o conceito que embala a verdade fosse o mesmo para mim e para ti. Mas não é. Tu mentiste. Não me interessa muito se tinhas intenção de o fazer ou não. O que aqui importa é que quiseste ser capaz de mentir. E não mentiste só com palavras. Mentiste com a tua vida. Mentiste com as tuas mãos, com o teu abraço e com a tua voz. Transbordavas mentira. Respiravas mentira. Eu aceitei as tuas mãos, o teu abraço e a tua voz com uma verdade que não tinhas nem eras. Ninguém pode ser verdadeiro sozinho. A verdade tem ecos nos que a recebem. Sempre. Não é a mentira que desorganiza, espanta, surpreende e fere. O que faz tudo isso é a verdade. É com a verdade que nos sentimos perdidos. Como se nos tivessem despido a roupa da alma e a tivessem levado para sempre. Maldita verdade que nos faz cúmplices de todos os crimes e que nos faz beber de copos que não são nossos, de dores que nos eram desconhecidas. Que venham mais mentiras para nos ajudar a adormecer e para nos convencer de que somos mesmo capazes de tudo. Quantos problemas seriam evitados se a verdade continuasse presa dentro das nossas palavras até apodrecer. Assim éramos todos absurdamente felizes.
Seríamos?!
Não. Quem não sabe a verdade não sabe nada. Quem sabe uma parte da verdade também não sabe nada. Quem quer dizer a verdade mas não disse, também não disse nada. As verdades não se cortam ao meio nem se dão em fatias. A verdade não é uma fatia feia que se coloca num guardanapo bonito. A verdade não é feia nem bonita porque é transparente. E é essa transparência que nos falta. Falta-nos ser lago em vez de pântano. Falta-nos não ter medo que nos vejam. Falta-nos ser verdade, sem querer ter em nós todas as verdades do mundo. Quem diz a verdade merece castigo sim senhor. Merece castigo quem se convence da sua mentira e a embrulha num papel de festa e de risos. Merece castigo quem nos diz a pele de uma verdade. O que conta é o que está por detrás dela. Da pele. E da “verdade”.
Cronista
Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)