Quando eu for velho quero ser menino
Quando eu for velho não quero dar trabalho a ninguém. Não quero que ninguém me dê banho. Muito menos um estranho. Quando eu for velho, quero que me deixem ser velho em paz. Quero comer quando quiser e quando me apetecer. Não quero horas marcadas. Não quero que me ponham comida na boca se eu não tiver fome. Quero levantar-me sozinho mesmo que as minhas pernas já não me obedeçam como antes. Não quero que me limpem a boca quando acabar de comer. Quero limpá-la eu mesmo que as minhas mãos tenham parado no tempo, como eu. Quando eu for velho não quero que me venham ver a pensar que um dia destes vai ser a última vez. Quero que se sentem ao pé de mim e das minhas feridas de vida e de velhice e as beijem com alegrias novas. Não quero que me obriguem a dormir se eu não quiser. Quando eu for velho quero fazer tudo sozinho, mesmo que já não possa. Quando eu for velho não quero esquecer-me dos meus netos nem dos meus filhos, mesmo que me esqueça. Não quero que se entristeçam com a minha velhice. Quero que se alegrem por eu estar ainda aqui. Quando eu for velho quero que sintam orgulho dos meus cabelos brancos, da minha pele amarfanhada e amarrotada e de todas as histórias que, nascidas da minha voz, já só têm princípio. Não faz mal não me lembrar do fim. Quem não se lembra do fim, nunca acaba. Não tenho medo da morte nem de coisa alguma. Só tenho pena da pena. Essa sim, até me assusta um bocadinho. Quando eu for velho e já não me lembrar porque é que cheguei a velho, vou querer ser menino. Quero ser o menino Jesus do presépio. Esse que nunca envelheceu, pendurado ao peito da minha mãe. É isso. Quando eu for velho, só quero ser menino.
[Imagem: http://danielvojtech.deviantart.com/art/old-bicycle-2-21332959]