O estranho caso do rapaz com medo do vento
O jovem casal passeava pela baixa de Lisboa. A tarde estava escura, o ar cheirava a castanha assada e o fumo que subia era tão cinzento como as nuvens que cobriam o céu. Não estava frio, mas o vento de dezembro convidava a apertar os casacos e a caminhar de mãos nos bolsos. Um vento agreste, que fazia dançar no ar os toldos dos cafés e um qualquer papel fugido das mãos de alguém. Caminhavam taciturnamente, calados e pensativos. Nessa manhã tinham discutido. Uma questão sem importância, até porque nenhum deles sabia já explicar como tinha começado a zanga. Ao longe, um chiar de travões e um baque surdo.
- Que medo! - exclamou ela, cortando o silêncio entre eles.
- Não tenhas medo. Foi em plena avenida, de certeza que foi só chapa.
- Sim, mas já viste? E se o choque tiver sido contra alguém numa bicicleta ou numa mota? Aí já não seria só chapa... Tenho mesmo medo destes acidentes.
Ele ponderou a resposta. E acabou por explicar:
- É bom que tenhas medo. O medo faz-te ficar mais alerta. No outro dia, vi na televisão a personagem principal de uma série a dizer que o medo é como se fosse um super-poder. Permite-te fazer coisas que nunca pensaste que conseguias.
Com um ar pensativo, ela mordeu o lábio inferior e questionou-se:
- E não haverá medos de vários tipos?
- Claro que sim. Olha, por exemplo, a nossa vizinha de cima tem medo de trovões. Um professor que eu conheço tem medo de aranhas. Tu tens medo de acidentes de viação. São medos irracionais no sentido em que, se os desconstruirmos, percebemos que se calhar não tínhamos razão para os ter, mas que nos ajudam a evitar o perigo. Tu conduzes com cuidado, o aracnofóbico certamente não vai ser picado por uma aranha perigosa só porque se aproximou demais e a nossa vizinha vai refugiar-se debaixo de tecto se começar uma trovoada e assim diminui a probabilidade de ser atingida por um raio.
Como tantas vezes lhes acontecia, ela continuou-lhe o raciocínio:
- Então e os medos racionais, que formulamos como medos mas que já desconstruímos à partida? Tipo o teu amigo da equipa de quiz que tem medo que um aliviar da austeridade em Portugal signifique a necessidade de um novo resgate? Ou aquela tua amiga que escreveu no Facebook que o medo dela era que os árbitros prejudicassem o Sporting para evitar a vitória no campeonato?
O vento, mais agressivo, parecia cortar a face. Ele fechou o casaco até ao queixo e respondeu:
- Esses não são defesa instintiva contra perigos. Não são verdadeiros medos. São questões "menores", com as devidas aspas, no sentido em que não são imediatamente vitais para a nossa integridade física ou mental. Não deixam de ser importantes para quem os sente, claro - mas são factores que, quer queiramos quer não, o nosso cérebro considera menos prioritários.
- Todos temos medo do infinito, do desconhecido, do futuro, da morte, do vazio, da solidão, da tristeza... não temos? Aquele nó no estômago quando nos vem a sensação de incerteza no amanhã, quando nos sentimos rodeados de demasiadas coisas que não conseguimos controlar...
- Não sei se te diga que todos somos assim, ou quase todos... É que alguns apregoam que não! Que são corajosos até ao infinito! Mas eu duvido... Ser corajoso não é deixar de sentir medo. É sentir medo e, mesmo assim, optar por enfrentá-lo se isso for o caminho mais positivo.
O vento, puxando a tempestade, zunia pelas paredes dos prédios, quase mais barulhento que os muitos carros que por ali circulavam. Ela parou e olhou-o, com um brilho inquisidor no olhar. Ele reparou nisso e imobilizou-se também, fitando-a, aguardando pela pergunta que aí vinha. E não demorou. Dois segundos depois, ela formulou a questão:
- E tu? De que tens medo?
Ele encolheu os ombros, braços caídos ao lado do corpo, e respondeu com uma versão do que tinha preso no peito desde a discussão dessa manhã:
- Tenho medo que o vento sopre mais forte e te leve para longe de mim.
Ela pegou-lhe na mão, e foi mesmo a tempo: nesse segundo, ele podia jurar que tinha começado a sentir, debaixo dos seus pés, a rotação da Terra sobre o seu eixo e a translação em redor do Sol. E teve medo genuíno de, se ela o largasse, não conseguir segurar-se ao chão e se perder à deriva no espaço.
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