Hoje eu não me recomendo…

De uma forma quase cíclica, retomam-se os temas de sempre dando-lhes uma nova roupagem ou enfoque e voltam à baila. Uma das últimas redescobertas, vista como grande novidade, deu origem a uma espécie de sound beat que tem sido tema de conversas e opiniões. Refiro-me ao conceito de pessoas tóxicas e ao perigo que representam para os outros.
 
Fruto de inúmeras circunstâncias da vida, incapacidade de lidar com algumas realidades, uma certa predisposição para o lado menos bom de tudo, simplesmente cansaço, ou até porque a vida às vezes é madrasta, etc… Estes e muitos outros motivos acabam por emergir da análise que fazemos da personalidade do outro e que o torna uma pessoa tóxica, amarga. Da mesma análise resulta ainda a clara distinção onde, satisfeito, repousa o nosso ego, embalado pela superioridade da nossa personalidade que tão bem faz a dissecação do outro e dos seus efeitos nefastos. Aliás, esta capacidade de julgar e identificar o tóxico do outro quase assume o estatuto de virtude. Parece até que algumas pessoas nasceram predestinadas, ou melhor, condenadas a prestar esse serviço à humanidade de facilmente identificar as pessoas tóxicas e lançar o alerta para que não haja contágio.
 
Certamente já me cruzei com outras pessoas que tornaram inevitável não reparar na sua toxicidade e capacidade de influenciar negativamente a minha vida e a dos outros… Mas também é verdade que quase ninguém cultiva a capacidade de dar conta da sua própria toxicidade… Tendo em mente Jo 8, 7, quem nunca reconheceu no espelho uma pessoa tóxica?!
 
Na minha vida, há dias assim: “Hoje eu não me recomendo”! Dias em que nunca é oportuno, está tudo no sítio errado, nada bate certo, sem paciência para mim e muito menos para os outros… Que fazer? Isolar-me para não contagiar ninguém?
 
À primeira vista parece a decisão mais lógica e até mais caridosa. Em qualquer situação tóxica a primeira medida a adotar é o isolamento em nome do bem comum. Não só não afetamos o outro com o nosso estado de alma, como realizamos aquele desejo íntimo e meio disfarçado de que se compadeçam de nós, estranhamente, até sentimos prazer na comiseração própria. No entanto, no mínimo, evitamos um mal maior.
 
Mas já estamos a contagiar com a ausência… é a solução mais simples, esperar que passe, que o tempo cure. Bem vistas as coisas, passa ser até uma outra forma de egoísmo ao privar os outros de mim e cair na expectativa inerte do que podem fazer por mim. Contagiar deliberadamente só porque “não tenho paciência para fingir”, ou então, porque “sou como sou e quem não gosta, paciência”? Que estatuto é este que achamos que possuímos e que nos dá o direito de nos sentirmos melhor se o outro se sentir mal também? Não deveria ser, o que posso fazer pelo melhor do outro?
 
Contudo, a vida não é só preto e branco! As melhores convicções, só por si, não alteram o nosso estado de alma. A dor às vezes é muita! Os outros merecem a verdade de mim. Partilhar a tristeza também é partilhar a vida!
 
A compaixão é um dos mais nobres sentimentos cristãos, que caridosamente devemos, não só ter, como aceitar. Atenção, novamente, partilhar a tristeza não é forçar os outros a ficarem tristes connosco! A compaixão, não é ter pena, é força criativa e transformadora. É comungar da vida do outro e propor novos horizontes, mostrar o copo meio cheio, é o impulso para voltar à vida plena, resultante da segurança de saber que não estamos sozinhos no renascer.
 
A ideia é deixar que o melhor do outro mude o pior de mim, estando ciente que exigirá esforço de ambas as partes para predispor-se a mudar, a estar aberto a outras opiniões, a aceitar a mão do outro, levantar-se e retomar o caminho. Porque na verdade, eu não tenho qualquer direito de impor o pior de mim colocando em causa a felicidade do outro, só por que não estou feliz! Mas tenho o dever de me deixar contagiar por quem consegue converter a minha tristeza, saudade, dor, desilusão… em algo melhor.

 

Paulo V. Carvalho

Cronista.

Licenciado em Teologia. Pós Graduação em doutrina e ética social. Mestrado em Informática Educacional. Especialização em Educação Especial. Professor. Gosta de desafios.

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