Direitos humanos e diversidade cultural

“O destino das mulheres é casar e não estudar”
 
Os recentes acontecimentos na Nigéria relacionados com o rapto, há duas semanas, de 223 raparigas cristãs e muçulmanas, por guerrilheiros islamitas,  de uma escola em Chibok, no nordeste do país, e depois do grupo islamista Boko Haram ter raptado mais 11 adolescentes da mesma zona, no domingo, para além do óbvio, chamou-me a atenção o motivo anunciado num vídeo do líder dos Boko Haram, Abubakar Shekau, para tal rapto: o destino das mulheres é casar e não estudar. “Deus instruiu-me para as vender”.
 
A questão da liberdade de acesso à educação, por parte das mulheres, tem sido um tema quente, quer seja no Afeganistão, ou no Paquistão, ou noutros países. Sabemos que se trata de fanáticos seguidores talibãs na sua maioria, aos quais, heroicamente, a paquistanesa Malala Yousafzai, a menina baleada a caminho da escola, disse: se os voltasse a encontrar, olharia para ele nos olhos e diria que a educação é um direito de todos. Depois, diria para ele fazer o que entendesse. Matá-la ou deixá-la viver.
 
Estando no mês da mãe, com este exemplo chamo a atenção para o facto da questão da educação ser apenas mais uma das situações (como poderíamos falar da mutilação genital feminina, regras de vestuário, estilos de vida impostos, condição da mulher no casamento, etc…) em que, de alguma forma, se faz tábua rasa quer da igualdade quer da dignidade da pessoa humana em nome de inquestionáveis tradições e hábitos culturais de um povo ou religião.
 
Num contexto pós-moderno, de entre as várias caraterísticas que o definem, podemos dizer que o relativismo é um pilar de extrema importância. Aliás, parece-me que a própria liberdade às vezes se radica no princípio de que tudo é relativo por oposição a algo que possa ser absoluto ou universal. Debato-me sobre estas questões pois, apesar de diversas tentativas, a relação entre os direitos humanos e a diversidade cultural nunca me pareceu bem resolvida, ou pelo menos assumida.
 
O conceito de direitos humanos é uma pedra angular da nossa humanidade. Tais direitos não são concedidos porque se é cidadão de um país ou está consagrado numa constituição, mas pertencem por direito a toda a humanidade. O conceito de universalidade dos direitos humanos é uma ideia unificadora, algo que podemos todos partilhar, apesar da diversidade dos sistemas jurídicos dos respetivos países ou religiões professadas. E no entanto, o tema dos direitos humanos frequentemente degenera em "choques de civilizações" ou "batalhas entre culturas".
 
Existirão efetivamente diferenças irredutíveis entre as tradições culturais e as crenças políticas do mundo? Será esta divisão incontornável quando se trata de direitos humanos?

 

É verdade que em vários países não ocidentais se tem discutido a pertinência e o fundamento dos direitos humanos universais. Fazem-no frequentemente em nome de "valores asiáticos", “árabes” ou “africanos” específicos, que diferem das prioridades ocidentais. Insistem muitas vezes em afirmar que o apelo à aceitação universal dos direitos humanos reflete a imposição dos valores ocidentais sobre as outras culturas.
 
Reconheço que há uma certa tendência na Europa e na América que estabelece, às vezes, implicitamente que é no Ocidente — e apenas no Ocidente — que os direitos humanos têm sido valorizados desde épocas antigas. A verdade é que o conceito dos direitos humanos universais no sentido amplo do Iluminismo, de direitos de todo ser humano, é na realidade uma ideia relativamente nova, tão difícil de encontrar no Ocidente como no Oriente antigos. Em razão dos conflitos políticos contemporâneos, em particular no Médio Oriente, descreve-se muitas vezes a civilização islâmica como fundamentalmente intolerante e hostil à liberdade individual. O problema reside no fanatismo com que são extremadas certas posições religiosas quando aliadas a um poder político ou económico que pretende dominar a todo o custo. Num pequeno exercício de memória histórica, certamente seremos capazes de nos lembrar de países atualmente profundamente fechados e que outrora eram mais livres e tolerantes.
 
Mas a questão torna-se mais complexa quando combinada com a teoria do relativismo cultural. De forma resumida, a razão de ser do problema está na dicotomia entre os direitos humanos universais e as práticas e costumes particulares de diversas sociedades. O ser humano, pelo menos desde Da Vinci, coloca-se sempre no centro e questiona: Quem está errado? Nós ou eles? Ou será que ninguém está errado?

 

À luz do relativismo cultural ninguém está errado, pois identifica o moralmente certo com o que cada cultura aprova. Não há, por isso, valores universais. A cada cultura a sua verdade. Há diferentes maneiras de definir o que é correto ou incorreto e nenhuma cultura está mais certa ou mais errada do que outra.

 

De acordo com o que se disse, a universalidade dos direitos humanos não pode coexistir com este relativismo, exige reconhecer que há valores que estão acima de qualquer tradição cultural, mesmo correndo o risco de ser acusado de fomentar uma atitude intolerante e negar o respeito mútuo entre as diversas culturas.
 
A matriz dos valores cristãos está profundamente refletida no que reconhecemos como direitos humanos e a tradição bíblica sobre o multiculturalismo é clara ao afirmar a unidade da raça humana e o carácter universal do cristianismo. Para os cristãos, a prática da diversidade multicultural é motivada pelo amor a Deus e, portanto, pelo amor ao próximo (judeu ou samaritano). Uma vez que Deus é Pai e Criador, o seu amor repousa sobre tudo, e chama os cristãos a imitar o seu amor que abarca toda a humanidade. Deve ser ainda um desafio extra para os cristãos o saber avaliar as questões relativas à diversidade cultural e que requerem o cultivo consciente - tanto individual como comunitário - das virtudes cristãs da humildade, discernimento, coragem, justiça e amor, para evitar qualquer tipo de abordagem arrogante contrária a tudo quanto defende o atual Papa.
 
A diversidade cultural não deve ser menosprezada pela comunidade cristã. Pelo contrário, os cristãos e as comunidades cristãs têm uma obrigação especial de demonstrar a realidade do amor de Cristo transformador de culturas. A necessidade de reconhecer a diversidade não se aplica apenas entre as nações, religiões e as culturas, mas igualmente no interior de cada nação, religião e de cada cultura.

 

[Fotografia: B. Anthony Stewart]

Paulo V. Carvalho

Cronista.

Licenciado em Teologia. Pós Graduação em doutrina e ética social. Mestrado em Informática Educacional. Especialização em Educação Especial. Professor. Gosta de desafios.

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