Dieta para a Quaresma

Já nos habituamos a ouvir falar de cortes, reduções, regimes alimentares, dietas, estágios... No entanto, se nos falam em jejum ou retiros espirituais "torcemos o nariz"!

 

Vivemos num tempo no qual o jejum, para alguns, é substituído pela proliferação de dietas que mantêm o corpo dentro de certos cânones de beleza plástica e sem alma; para outros, é uma forma de vida forçada porque é-lhes difícil alimentarem-se com o essencial e morrem de fome. São as contradições que vivemos neste mundo!

 

A Igreja exorta-nos à prática do jejum como forma de viver, com sobriedade e moderação, todas as realidades que podem tornar pesada a existência humana, esmagando-a sob as necessidades primárias: a comida, o sono, os bens... O jejum é uma forte chamada de atenção para nos voltarmos para os valores importantes da vida. A sobriedade reconduz-nos ao primado do ser sobre o haver; da identidade sobre a aparência; da solidariedade sobre o egoísmo desenfreado.

 

Somos chamados a repensar a nossa vida, focalizando naqueles excessos que nos fomos habituando e que caracterizam os nossos estilos de vida pessoais e comunitários. Chamados a refletir sobre pequenas e grandes escravidões que orientam as nossas escolhas e tolhem a nossa liberdade: o consumismo, a moda, o dinheiro, os bens e interesses muito pessoais.  A pensar no desperdício diário nas nossas casas, na abundância em que vivemos. Adquirir um estilo de vida sóbrio é exercitar o discernimento sobre aquilo que é essencial, para viver uma existência humana e crente de adultos, de homens e mulheres reflexivos e responsáveis pela qualidade da própria existência e daquela dos nossos irmãos, companheiros de viagem.

 

Renunciar é um exercício de grande liberdade interior e de domínio de si mesmo. Alarga os horizontes da própria consciência e dos valores que cada um defende. Potencia o ser e a solidariedade com aqueles que vivem em situação de dificuldade e indigência. A sobriedade tem uma função comunitária. Abre-nos à realidade que nos circunda; sacode as consciências ofuscadas pela indiferença, a procurar caminhos de crescimento para todos.

 

É preciso coragem para descermos ao nosso interior, ver o que podemos renunciar e decidir fazê-lo!

 

Na infância as renúncias quaresmais, por exemplo, às guloseimas, - que agora parecem-nos simples e banais, coisas de criança -, tiveram uma função pedagógica: pequenas escolhas que evidenciavam o desejo e a vontade de fazer penitência em vista da conversão; renúncia de certos bens, para os oferecer aos outros e assim, procurar e agradar a Deus. Formaram-nos para a temperança; para a capacidade de não ficarmos escravos das necessidades, das emoções, dos sentimentos desmedidos... Ensinaram que "nem só de pão vive o Homem, mas de toda a Palavra que vem da boca de Deus". (Cfr. Mt 4, 4)

 

Ousarei dizer que, se o jejum da Quarta-feira de Cinzas e da Sexta-feira Santa, a abstinência da carne de todas as sextas-feiras da Quaresma, não nos levar a este descer ao profundo do nosso ser, a esta libertação e reorientação para Deus, não fazem sentido nenhum.

 

Aliás, além do cumprimento deste preceito, faz mais sentido renunciar às palavras inúteis, maldizentes e obscenas; ao excesso de comida, roupa, tecnologia e divertimento; à superficialidade das relações familiares, vizinhança e trabalho; à pouca atenção que damos às pessoas próximas ou afastadas; à ausência de gestos de perdão e de reconciliação.

 

Temos outras "formas de jejuar": dedicar mais tempo ao serviço do outro, à solidariedade, seja individualmente, seja como família ou comunidade. Gestos simples, mas incisivos, que transformam as relações e mudam a hostilidade em acolhimento e hospitalidade.

 

Não foi isto que Pedro, Tiago e João, viram no Monte Tabor na Transfiguração do Senhor?

Paulo Victória

Cronista

Licenciado em Teologia. Professor de EMRC. Adora fazer Voluntariado.

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