(SO)RIR É O MELHOR REMÉDIO

Todos os dias um dos principais motivos de reflexão da Catarina era a máscara de rosto aborrecido, triste, enfadado e fechado que caracterizava a maior parte das pessoas. Inquietava-a a frequência com que tanta gente caminhava pelos trilhos do quotidiano de forma sisuda, tensa, formal e solene como se a vida lhes tivesse causado uma indigestão. Intrigava-a as razões pelas quais se viam tantos semblantes carregados, desanimados, sofridos, mal-humorados, ensimesmados e stressados, em que a alegria e a felicidade pareciam ser realidades fugazes e onde a doença da moda parecia ser a depressão.

 

A Catarina achava que era bom estar sozinho, pensar a vida e deixar a consciência falar. Mas sentia que coisa bem diferente era o isolamento de quem se fechava aos outros, se deixava empobrecer e apodrecer sem esperança e se encerrava masoquistamente nos seus problemas e sofrimentos. Considerava que a tristeza não era um pecado mas viver conscientemente nela sem procurar lutar por viver de forma mais animada e feliz já o poderia ser. Sabia que Dante colocava no mais profundo do seu inferno aqueles que voluntariamente viviam ou queriam viver tristes.

 

Contudo, para a Catarina, pior que tudo isso, era pensar que as coisas da Religião pareciam ser tristes, quando o essencial do que afirmavam era promotor e motivo de alegria, confiança e esperança. O povo habituara-se a olhar para a Religião e para Deus num misto de sentimentos que evocavam a tristeza, a seriedade, a angústia, o pecado, a culpa, o castigo, o sacrifício, a morte, o juízo, o inferno, etc. Sempre se falou, pintou ou esculpiu um Deus algo sisudo, sério e melancólico, sensações profundamente acompanhadas de sagrado respeito e temor.

 

Um dia, a Catarina decidiu ir à biblioteca da sua universidade e foi tentar saber mais sobre esta temática, mergulhando em inumeráveis e empoeirados livros e enciclopédias. Perturbava-a a questão da aparente tristeza que revestia a cara de muita gente e, em concreto de muitos cristãos, e leu sem parar horas a fio.

 

A verdade é que ficou surpreendida com algumas coisas que descobriu: S. Francisco de Assis chamava de doença babilónica à tristeza e pensava que a alegria era o remédio eficaz contra as inúmeras insídias do demónio; S. Francisco de Sales achava que a tristeza era contrária ao serviço do amor divino; Santa Teresa de Ávila convidava à alegria pois quando a alma se encolhia era coisa muito má para o bem; S. Tomás Moro costumava pedir a Deus uma alma que não conhecesse o aborrecimento, os resmungos, os suspiros e os lamentos e que soubesse rir-se de uma boa piada para tirar um pouco de alegria da vida e partilhá-la com os outros.

 

Depois, chamou-lhe a atenção que na obra ‘O Nome da Rosa’ de Umberto Eco, o protagonista dissesse que o diabo não era o príncipe da matéria, mas a arrogância do espírito e a fé sem um sorriso, e que o diabo era sombrio porque sabia para onde ia e ia sempre para o sítio donde procedia, pois vivia nas trevas. O velho sinistro de olhos brancos tornara-se assassino por causa do riso, pois rir era visto como um pecado. Na teologia medieval, o riso era censurado com o argumento de que de Jesus Cristo não se ouvira jamais dizer ou não estava escrito que tivesse rido. O riso poderia afastar as pessoas de Deus. Parecia que o humor tendia a tornar profano o sagrado e o riso poderia contaminar as pessoas sérias e doutas.

 

De seguida, sorriu com um texto que dizia que Bruce Marshall, acostumado à seriedade da liturgia anglicana, confessava que simpatizou mais com o catolicismo a partir de uma ocasião em que lhe caiu uma moeda nas fendas apertadas de um aquecedor da igreja e isso provocou o riso dos acólitos e as gargalhadas do padre que se juntou a eles em vez de lhes ralhar. Segundo ele, um Deus que deixava as pessoas rir na igreja devia ser bastante inteligente.
 
A Catarina estava a gostar daquilo que acabara de ler mas, como se fazia tarde, decidiu ir para casa. A caminho do autocarro, passou em frente de uma igreja e, como ainda faltava algum tempo para a hora do transporte, decidiu entrar.
 
Nem por acaso, estava a decorrer a missa e, por incrível que parecesse o sacerdote falava de S.Filipe Néri, referindo que sempre revelara um sentido de humor muito refinado e utilizava-o como ninguém para evangelizar e dar bons conselhos a quem a ele recorria. Contava que certa vez veio ter com o santo uma mulher conhecida pelo seu carácter mordaz. Vinha com a lengalenga habitual de que a sua casa e a sua vida eram um inferno. Ela e o marido não se davam, chateavam-se por tudo e por nada, discutiam pelas mais pequenas coisas e nunca chegavam a acordo sobre absolutamente nada.
 
Claro que, segundo ela, a culpa era toda do marido, pois ela era sensata, equilibrada e justa. Uma doçura de pessoa. Era uma vítima do mau humor do marido e outra coisa não fazia senão responder-lhe, pois não era de ferro. Pedia ao santo que a ajudasse e lhe desse conselhos sobre a forma de enfrentar a situação. Filipe de Néri ouviu-a com atenção e compaixão e, enquanto sorria no seu coração, foi maquinando a forma de lhe dar uma lição.
 
Então, deu-lhe a fórmula mágica que tudo alteraria, o medicamento cem por cento eficaz, a poção milagrosa para todos os males. Entregou-lhe uma garrafa de água. Sempre que o marido começasse a ralhar ou a ser violento, deveria ir buscar a água milagrosa e beber um golo, conservando-a, por alguns minutos, na boca.
 
Passados uns dias, a mulher regressou eufórica com a garrafa vazia, dizendo maravilhas da água benta. Sempre que o marido começava a brigar, ficava sozinho a mandar vir pois ela bebia do dito líquido sagrado e as discussões depressa se esfumavam. Na sua casa passou a haver harmonia e até o marido parecia mais brando e menos conflituoso. E pediu outra garrafa daquele líquido sobrenatural. O bom e astuto Filipe Néri sorriu e, enquanto a mulher esperava, foi buscar outra garrafa de água à fonte da rua.

 

A Catarina morreu de riso, tal como as pessoas que estavam na celebração. Como se aproximava a hora do autocarro, saiu com um sorriso no rosto. Afinal, a missa não era bem aquela coisa chata de que ouvira falar. No dia seguinte, logo de manhazinha, foi comprar o pão à padaria do costume e chamou-lhe a atenção o som do sino de uma capela ao fundo da rua junto a um jardim. Para dizer a verdade, a Catarina nunca lá tinha entrado mas sentia naquele momento uma vontade inexplicável de lá ir.

 

Ao ver uma velhinha a entrar com um suave e singelo sorriso no seu rosto, tocou-lhe no ombro e perguntou-lhe:

 

- Desculpe incomodar… habituei-me a ver quase toda a gente a entrar e a sair das igrejas como umas caras aborrecidas e tristonhas, como se estivessem a fazer um frete... Porque é que a senhora está a entrar neste local sagrado com uma cara serena, alegre e simpática?

 

- Ahahahhaha… que querida que tu és! Enganei-te bem… estou a brincar. Não sei se já ouviste dizer que o Evangelho é uma Boa Nova… ‘O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido num campo, que um homem encontra, mas torna a esconder. Cheio de alegria, vai, vende tudo o que possui, e compra o campo’…  e ‘Digo-vos isto para que a Minha alegria esteja em vós e o vosso gozo seja completo’… Olha, Almada Negreiros dizia que a alegria era a coisa mais séria do mundo e Montapert achava que o bom humor espalhava mais felicidade que todas as riquezas do mundo.

 

A Catarina respondeu:

 

- Fantástico… não sei como é que sabe tanta coisas de cor… diga mais coisas dessas… quero ouvi-la…

 

A velhinha sorriu e, olhando para as árvores, debitou fluentemente mais umas ideias:
 
- Dostoievski dizia aos amigos que não pedissem a Deus dinheiro, triunfo ou poder mas sim a coisa mais importante: a alegria… É que, segundo a Santa Teresa, um santo triste é um triste santo… Nietzsche afirmava que acreditaria em Deus se visse os cristãos com rostos mais alegres… Para Pascal, a alegria é o verdadeiro segredo do cristão e Espinoza considerava que se quiséssemos que a vida nos sorrisse, devíamos dar-lhe primeiro o nosso bom humor… Bem, já falei demais… Só te digo mais duas, uma do Alcorão ‘Aqueles que conseguem que os seus companheiros riam, merecem o paraíso’ e outra, que é um provérbio chinês ‘Se alguém está cansado demais para dar-te um sorriso, concede-lhe o teu’.

 

A Catarina estava sem palavras. A idosa tinha-lhe enchido o coração e feito olhar a vida de outra maneira. Depois de se despedir entusiasticamente, foi para casa. Depois de tomar o pequeno-almoço, foi para a internet investigar mais alguma coisa sobre a alegria e o bom-humor no Cristianismo.

 

Como ouvira a velhinha falar de Santa Teresa foi averiguar quem era ela. Apesar de se ter dado conta que fora uma das santas mais importantes da história devido às suas revelações e experiências místicas tendo chegado a receber o título de Virgem e Doutora da Igreja, o que mais chamou a atenção da Catarina foi a coragem e o sentido de humor com que encarava as tribulações.

 

Leu que dela se dizia que, quando alguma das suas irmãs freiras lhe apareciam cansadas de tanta oração e sacrifício e a contar-lhe as visões sobrenaturais a que tinham assistido, ela aconselhava-as a irem comer qualquer coisa e a descansar um pouco, pois com fome imaginava-se muita coisa muito pouco real. Depois que falassem novamente com ela.
 
A Catarina deu-se conta que muitas anedotas cheias de humor contavam-se de Santa Teresa. Por exemplo, ela terá dito a Frei João que lhe fizera uma pintura de que não gostou muito, que aquela não era bem ela pois tinha sido retratada feia e remelosa.
 
Noutra ocasião ela conta que, exausta depois de uma jornada dura de trabalho, magoara-se numa perna e refilara com Deus. Desabafou, então, com o seu Senhor dizendo-lhe que só lhe faltava mais aquela, depois de tanto esforço e sofrimento pela causa do Evangelho. Conta Sta. Teresa que Deus lhe respondera quase em tom de provocação, dizendo que era assim que tratava os seus amigos. Claro que aquele episódio não podia ter terminado com a observação do Senhor e a santa, com o seu humor característico e a mania que tinha para dizer sempre a última palavra, retorquira-Lhe que assim já compreendia porque é que Ele tinha tão poucos amigos…
 
Depois de muito rir, a Catarina continuou a pesquisar e ficou deliciada com uma história do Papa Leão XIII que fora pontífice de 1878 a 1903 e fizera grandes esforços para superar as oposições entre a Igreja Católica e as exigências políticas, culturais e sociais do mundo moderno, combatendo o racionalismo, o liberalismo e a maçonaria.

 

Leu que em certa ocasião um pintor tentou convencer o papa a que o deixasse pintar o seu retrato. Dada a importância dele para a Igreja e para a sociedade em geral, o pintor achou que fazia todo o sentido e constituiria para si uma honra realizar uma bela pintura de pessoa tão ilustre. Pelos vistos, o pintor o que tinha de sobra em boa vontade e boa-fé, faltava-lhe em jeito e habilidade. Leão XIII, mais preocupado com a Igreja e com a causa da fé cristã e como era uma pessoa bem-humorada lá acedeu à solicitação do pintor, apesar da sua pouca vontade em aparecer num quadro.

 

O pintor procedeu à pintura do retrato, apesar da falta de tempo e satisfação do papa. Terminado o trabalho e feitos os retoques finais, o pintor levou a tela ao Vaticano para que Leão XIII a visse e desse a sua aprovação para exibição pública. Lembrou-se, também, de lhe pedir uma frase que servisse de lema, para ser colocada por baixo da pintura.
 
Então, o papa contemplou o seu retrato, olhou-o de cima a baixo e, como lhe pareceu de muita má qualidade e uma pintura em si mesma verdadeiramente horrível, ficou em silêncio e, sem mais comentários, sorriu e só se lembrou de sugerir: ‘Mateus 14, 27; Leão XIII’.

 

O pintor ficou intrigado com a enigmática citação bíblica do papa mas estava convencido da satisfação do papa. Após escrever num papel o texto sugerido, correu para casa para procurar o mais rapidamente possível o que dizia tal referência evangélica. Qual a sua estupefação ao dar-se conta que o contexto da citação sugerida pelo papa era a do episódio dos discípulos numa barca no meio do mar, açoitada pelas ondas. Jesus foi ter com eles, caminhando sob as águas e ficaram muito assustados, achando tratar-se de um fantasma. Jesus falou-lhes, então, e disse: “Tranquilizai-vos, sou Eu; não temais!”. Era a frase que humoristicamente Leão XIII escolhera para o seu retrato.

 

A Catarina não podia mais com o riso. Então, decidiu sair de casa e voltou à igreja do dia anterior para falar com o padre que ouvira na missa. Ao chegar lá, disse-lhe:
 
- Padre, não tenho ligado muito a essas coisas da fé e da religião… acho que dificilmente me salvarei… mas se calhar ainda posso fazer alguma coisa pois não gosto muito de calor e no inferno parece-me que é bastante quente…

 

O padre deu uma sonora gargalhada e, convidando-a a passear um pouco consigo no claustro da igreja, disse-lhe que acreditava firmemente que ela se salvaria pois procurava a verdade, o sentido da vida, queria amar e sabia rir. E contou-lhe uma história:

 

- Conta-se que um homem vivera muito atormentado nos seus últimos dias de vida pois decidira ler os Evangelhos para se preparar para a morte iminente. A causa de toda a sua tristeza fora o texto de S. Mateus que fazia referência ao juízo final. Lera que, quando o Filho do Homem viesse na Sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, sentar-se-ia, no Seu trono de glória e, reunidas todas as nações, apartaria as pessoas umas das outras. Umas à esquerda e outras à direita.

 

Diria às da direita que viessem, pois eram benditas do Pai e recebessem em herança o Reino e a vida eterna ‘porque tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e recolhestes-Me; estava nu e destes-Me de vestir; adoeci e visitastes-Me; estive na prisão e fostes ter Comigo’. É que ‘sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes’ e ‘sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a Mim que o deixastes de fazer’, e, por isso, que se afastassem para o suplício eterno estes que são malditos. O pobre homem estava tão aterrorizado com o texto que ainda morreu mais depressa, pois a sua consciência estava muito pesada por ter sido terrivelmente egoísta e por não ter feito nada de jeito pelos outros. No tribunal divino não teria a mínima hipótese e iria direitinho para o Inferno.

 

Na fila das pessoas que o antecediam, observava e ouvia as argumentações usadas e os muitos elementos do ficheiro divino referentes a cada pessoa e mais se convencia que não merecia o paraíso. O homem estava aflito pois nada tinha feito para o bem dos demais. Quando chegou a sua vez, Jesus Cristo referiu-lhe o registo bem pequeno e quase insignificante para merecer ir para o Céu. De repente, e quando nada o fazia prever, Jesus dá-se conta de um pormenor engraçado e interessante. Disse-lhe que, afinal, ele podia entrar no paraíso porque, há muitos anos atrás, uma criança estava triste, sozinha e desolada e ele tinha metido conversa com ela, pôs-lhe a mão no ombro e contou-lhe umas anedotas que a fizeram rir e ela ficou melhor e aliviada…
 
Então, a Catarina disse:
 
- Até podíamos acrescentar-se mais uma frase ao Evangelho mas que, no fundo, está nas suas entrelinhas e é uma prova inequívoca de amor: Estava triste e fizeste-me rir. E sempre que alguém o fizer a um dos mais pequeninos é a Ele mesmo que o fazemos.
 
E o sacerdote respondeu:
 
- Isso mesmo. É que rir é muito bom e faz bem e, como se costuma dizer, um dia sem rir é um dia desperdiçado e (So)Rir é o melhor remédio.

 

Paulo Costa

Conto.

O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.

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