Os quatro pontos cardeais da bússola

O ritual repetia-se todos os dias e, após o almoço, a avó Aurora passava as tardes a ler. Como as mazelas da idade já não lhe permitiam grandes aventuras, adorava viajar com as asas da imaginação que lhe proporcionava a biblioteca da sala. Não havia melhor programa que, sentada do seu velho sofá vermelho junto às vidraças da janela voltada para o bosque, voar através das folhas já amareladas dos seus livros.
 
Um dia, depois de ter adormecido com os dedos entre as páginas de um romance, despertou com o latido de um cão na rua e, enquanto se espreguiçava, olhou fixamente através dos seus óculos redondinhos para as escadas de madeira que davam acesso ao sótão da casa. Como havia muito tempo que não ia lá acima, decidiu levantar-se, pousou religiosamente o livro em cima da cómoda e subiu com todo o cuidado para não cair.
 
O sótão estava como o deixara o marido havia muitos anos e, agora, o pó e as teias de aranha eram mais que muitas, decorando aquele escuro e misterioso espaço da casa em que a lanterna que levava era o único instrumento que dava cor às coisas. Deteve-se num velho baú que descansava junto a uma prateleira e, espicaçada pela curiosidade, abriu-o lentamente. Entre livros e uma infinidade de isqueiros e porta-chaves, uma bússola chamou a atenção da avó Aurora.
 
Pegou nela, olhou-a demoradamente e, passando os dedos com suavidade, limpou-lhe o pó. Como alguém lhe bateu à porta, colocou a bússola no bolso do avental e desceu. Eram os seus dois netos que tinham decidido ir tomar um chá consigo. Era sempre uma festa quando a Rita e o Diogo iam lá a casa e, agora que estavam de férias, demoravam-se muito mais para contentamento recíproco.
 
A avó Aurora estava com um brilhozinho nos olhos que chamou a atenção dos netos. Enquanto preparava o chá e punha uns bolinhos na mesa, mostrou-lhes a bússola que tinha encontrado no velho baú do sótão. A Rita e o Diogo nunca tinham visto uma bússola ao vivo e, entre um bolinho e um gole de chá, folhearam uma enciclopédia, procurando coisas sobre o achado insólito da avó.
 
A bússola era, sem dúvida, o instrumento mais conhecido da Era dos Descobrimentos e as suas propriedades magnéticas tornaram-na muito importante para a navegação e orientação. Os pontos cardeais, colaterais e subcolaterais formavam um desenho em forma de estrela, a que se deu o nome de rosa-dos-ventos. A avó Aurora, ao ver o interesse dos netos naquele objeto, disse-lhes:
 
- Olhem, eu sei o quanto vocês gostavam do avô Joaquim e, por isso, eu quero oferecer-vos esta bússola que era dele. Mas com uma condição… Gostava que os seus quatro pontos cardeais, o Norte, o Sul, o Este e o Oeste, vos ajudassem a pensar na importância para a vossa vida das quatro virtudes cardeais: a Prudência, a Temperança, a Fortaleza e a Justiça. Não se esqueçam que são quatro referências morais, centrais, fundamentais e orientadoras para a existência humana.
 
A Rita e o Diogo ficaram muito sensibilizados com a generosidade da avó e com as palavras sábias que proferira e prometeram-lhe guardar com carinho a bússola e recordarem o simbolismo que ela lhe tinha atribuído. As férias seriam uma boa ocasião para se deixarem orientar pela rosa-dos-ventos da bússola.
 
No dia seguinte, a Rita e o Diogo tentavam discernir sobre a melhor opção para o fim-de-semana e a coisa estava difícil. Uns amigos da Rita tinham-nos desafiado a viajar rumo ao sul, onde teria lugar um festival de verão muito famoso e com excelentes bandas. Por outro lado, o Diogo estava com vontade de aceitar o convite dos vizinhos que queriam acampar junto a um lago para conviver e desfrutar da natureza.
 
Os prós e contras eram mais que muitos e não havia forma de tomar uma decisão. Então, a Rita lembrou-se do presente da avó Aurora e foi buscá-lo. Os dois irmãos contemplaram a bússola e lembraram-se com ternura do avô Joaquim que era uma pessoa sábia, reta, equilibrada, previdente, cautelosa e com bom senso. Afinal, era um dos quatro pontos cardeais da vida: a Prudência.
 
A Rita e o Diogo foram a uma enciclopédia pesquisar o significado da palavra e leram que a prudência era a virtude que dispunha a razão prática a discernir em qualquer circunstância o verdadeiro bem e a escolher os justos meios de o atingir. O homem prudente vigiava os seus passos e a prudência guiava imediatamente o juízo da consciência. O homem prudente decidia e ordenava a sua conduta segundo este juízo e, graças a esta virtude, aplicava sem erro os princípios morais aos casos particulares e ultrapassava as dúvidas sobre o bem a fazer e o mal a evitar.
 
Aquelas ideias sobre a virtude da Prudência, orientou-os decisivamente na sua tomada de decisão. Um fim-de-semana com os vizinhos em comunhão com a natureza oferecia mais vantagens e menos riscos, além de que música não faltaria nunca até porque o Diogo tocava guitarra. Ficaram satisfeitos com a decisão tomada. Na verdade, o fim-de-semana decorreu com a toda a serenidade que o local paradisíaco proporcionava e ofereceu mil e uma oportunidades para todos se divertirem de forma alegre e saudável.
 
Na semana seguinte, o aniversário de uma amiga da Rita marcava as atenções dos dois irmãos. Como se celebrava a sua passagem para a maior idade, a festa realizava-se numa quinta e ali se juntou muita gente das suas idades.
 
O ambiente estava ao rubro e a alegria misturou-se com álcool e o resultado não estava a ser muito próprio. Quezílias antigas entre amigos vieram ao de cima e houve confusão. Brincadeiras e partidas entre grupos geraram algum mau estar. As bebidas e outras substâncias despertaram os apetites sensíveis e exacerbaram as paixões.
 
Como todos, a Rita e o Diogo estavam envolvidos naquela atmosfera mas, ao olharem para uma televisão que passava imagens marítimas de uma caravela quinhentista, lembraram-se da bússola da avó Aurora. Tinham consciência de que estavam desorientados e recordaram a virtude cardeal da Temperança.
 
Saíram os dois para o exterior para espairecer e, enquanto olhavam as estrelas, um velho agricultor da quinta aproximou-se e, pensando que eram namorados, falou-lhes da saudade dos seus tempos da mocidade. E lá veio a conversa de que antigamente é que era bom e que havia muito mais respeito e maturidade. Enquanto a Rita e o Diogo sorriam, o lavrador continuava a tecer considerações sobre a importância do autocontrole, do domínio dos instintos, da sublimação das paixões e da moderação na questão dos prazeres.
 
Quando o ancião terminou o seu discurso, a Rita e o Diogo disseram-lhe que eram irmãos e deram os três uma enorme e sonora gargalhada. Foram beber um sumo de laranja à casa do lavrador que era ali ao lado, agradeceram-lhe as palavras e contaram-lhe a história da bússola da avó. Fora a parte da festa mais interessante e engraçada da festa de anos da amiga.
 
Os dias seguintes foram de praia, esplanada e cinema, sem nunca esquecer o bairro de lata onde todas as semanas iam dar explicações a uma mão cheia de crianças. Durante o ano letivo, ajudavam a miudagem na realização dos trabalhos de casa e na compreensão das matérias, brincavam com elas e tentavam sensibilizar a sociedade civil para a miséria com que viviam as muitas famílias que ali sobreviviam, procurando arranjar apoios.
 
Com a chegada das férias, todos os dias a Rita e o Diogo arranjavam tempo para a criançada, apesar de terem sempre que enfrentar os comentários depreciativos e incompreensões da vizinhança do bairro que se negava a alimentar a permanência daquela gente por aquelas bandas por considerarem que davam mau ambiente à zona, julgarem que o que os irmãos faziam era inútil e que os responsáveis políticos é que deviam resolver aqueles problemas sociais.
 
Na verdade, a Rita e o Diogo sentiam que, muitas vezes, remavam contra a maré. Mas a alegria das crianças levavam-nos a preferiam fazer um bocadinho do que não fazer nada, amar do que falar, ajudar do que criticar, acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão. Naqueles dias, agarraram-se como nunca à rosa-dos-ventos da bússola da avó Aurora e inspiraram-se na virtude da Fortaleza para não se perderem no seu propósito de serem bons. Ajudavam-se um ao outro na perseverança, na resistência à mediocridade e na firmeza e constância da prossecução do bem.
 
Tentavam vencer a apatia, a acomodação, as dificuldades e as provações com amor e achavam que mais do que dar coisas, o importante era darem-se a si mesmos. A responsabilidade social e a consciência cívica não tinha férias e estar com os miúdos e ajudar as suas famílias era uma excelente forma de dar sentido e conteúdo ao tempo livre.
 
Uns dias depois, numa manhã de praia, a Rita e o Diogo foram tomar um gelado à esplanada e ficaram perplexos ao assistir ao roubo de uma carteira de uma senhora. Manifestaram-lhe solidariedade e logo se disponibilizaram a levá-la à polícia para apresentar queixa e servirem de testemunhas.
 
Nem podiam acreditar no que viam e ouviam na esquadra com os inúmeros casos de denúncias de violência doméstica, roubos de carros e joias, abusos laborais, assédios sexuais, descriminações raciais, etc. Imediatamente se lembraram do quarto ponto cardeal da rosa-dos-ventos da bússola da avó Aurora ao ler num placard um texto sobre a Justiça: ‘A justiça é a virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar ao próximo o que lhe é devido. A justiça leva a respeitar os direitos de cada qual e a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade em relação às pessoas e ao bem comum’.
 
A Rita e o Diogo recordaram as muitas vezes que os pais e os avós os sensibilizaram para a virtude da justiça e como sempre se esforçaram por serem justos com os demais e conversavam com a senhora da praia sobre como a justiça regulava a convivência entre as pessoas, possibilitava o bem comum, harmonizava os direitos e deveres de cada um, defendia a dignidade humana e respeitava os direitos humanos. A senhora concordava e chamava a atenção para a sua convicção de que a paz e o amor não podiam existir sem a justiça.
 
A rosa-dos-ventos da avó Aurora tinha sido a grande companheira de viagem das férias de verão da Rita e do Diogo e aqueles dias tinham sido um extraordinário estágio para a vida de ambos, com a orientação dos quatro pontos cardeais da bússola. Então, decidiram ir a casa da avó para lhe contarem tudo quanto tinham vivido e descoberto naqueles dias.
 
Depois de os escutar com toda a atenção, a avó Aurora juntou as mãos dos dois netos, envolveu-as com as suas e disse-lhes:
 
- A Fé, a Esperança e a Caridade são as virtudes teologais pois tornam-nos capazes de conhecer e amar a Deus. Elas são virtudes inteiramente voltadas para Deus. A Prudência, a Temperança, a Fortaleza e a Justiça são as virtudes cardeais que estão mais voltadas para os nossos comportamentos, as nossas atitudes e as nossas ações. Elas ajudam-nos a bem agir, a fugir do pecado e a vencer as tentações, levando-nos, assim, indiretamente, a Deus.
 
A Rita e o Diogo estavam emocionados com a fé e a bondade da avó e prometeram jamais se esquecerem da mensagem da rosa-dos-ventos e nunca se perderem na viagem da vida. A avó Aurora, com um lindo sorriso no seu rosto enrugado, depois de lhes dar a entender que a bússola era a melhor herança que lhes podia deixar, disse-lhes:

- As quatro virtudes cardeais são como os quatro pontos cardeais da rosa-dos-ventos, as quatro estações do ano, as quatro extremidades da cruz, os quatro alicerces essenciais da casa, os quatro pés da mesa, da cadeira e da cama. Encontrem o vosso Norte e nunca se hão  de desorientar. Nunca se esqueçam que somente se pode amar verdadeiramente a Deus se amarmos e respeitarmos completamente os outros. Só somos autenticamente religiosos se formos profundamente humanos.

 

[Imagem de Benjamin Faust]

Paulo Costa

Conto.

O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.

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