Conto: O EREMITA E OS DEZ FARÓIS
A abadessa do convento estava incrédula e não sabia o que fazer. Não havia vocações há muito tempo e, agora, duas jovens apresentavam-se para ingressar na ordem religiosa. Então, decidiu propor-lhes que fossem falar com um velho eremita que vivia do outro lado das montanhas numa região deserta junto ao mar para que ele a ajudasse a discernir sobre as motivações das duas raparigas. Despedindo-se delas, disse-lhes:
- Para que sigais radicalmente o Mestre e possais entrar na vida eterna, ide, despojai-vos de tudo e observai os mandamentos. Falai com o ancião eremita que vive perto de um farol do lado de lá das montanhas e a sua santidade, experiência e sabedoria ajudar-nos-á.
As raparigas, de nome Francisca e Mafalda, levavam uma mochila e uma tenda para pernoitar pois a viagem duraria vários dias. Apesar de desejarem ambas abraçar a vida religiosa, aparentavam ser muito diferentes. A Francisca provinha de uma aldeia distante, falava pouco e sorria com espontaneidade e a Mafalda era oriunda de uma cidade próxima, conversava com facilidade e revelava alguma sobriedade.
Na primeira manhã de caminho, a Mafalda tecia longas e profundas considerações sobre Deus e o seu indiscutível chamamento à vida consagrada. Enquanto comiam alguma coisa à sombra de uma árvore, a Mafalda dizia à Francisca o quanto amava Deus acima de todas as coisas, com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todas as suas forças. A Francisca escutava-a, enquanto olhava a paisagem. Quando a Mafalda se calou, a Francisca respirou fundo, fechou os olhos e agradeceu a Deus a refeição, invocando-O como Senhor e Criador.
A meio da tarde, cruzaram-se com um pastor que, acompanhado do seu filho, guardava o seu rebanho. Meteu conversa com as jovens e, com simpatia, disse que Deus estava inspirado quando as criou pois eram lindas. A Francisca corou, sorriu e disse-lhe boa tarde, enquanto a Mafalda, chateada com o piropo do pastor, teorizava sobre a proibição de não invocar o santo nome de Deus em vão, sobre o pecado da blasfémia e sobre o respeito e reverência diante do Senhor, cujo nome é poderoso em toda a terra. O pobre pastor nem sabia onde se havia de meter depois daquele discurso.
Após a primeira noite nas tendas, seguiram caminho e deram-se conta que era domingo e que era dia de missa. Procuraram chegar o mais rapidamente possível a uma aldeia para participar na eucaristia. Quase a chegar à pequena capela da aldeia onde a missa começaria daí a cinco minutos, viram uma velhinha que tropeçara numa pedra e caíra ao chão, estando a sangrar da cabeça. A Mafalda compadeceu-se mas disse-lhe que não a podia socorrer pois era mais importante guardar o dia santo de Deus, o dia do Senhor em que se celebrava a ressurreição de Cristo. E lá foi. A Francisca ficou para trás, levou a idosa a casa, tratou das suas feridas e fez-lhe companhia até que terminasse a missa e continuasse a viagem com a Mafalda.
Mais adiante, a Mafalda recebeu a visita inesperada dos pais enquanto a Francisca se dava conta que estavam quase a passar pela sua aldeia natal. Lancharam todos juntos e a Mafalda lembrou a importância de honrar pai e mãe e obedecer-lhes pois isso era justo e necessário e garantia vida longa e feliz, além de que fora dos seus pais a iniciativa de ingressar no convento. A Francisca, no entanto, disse que preferia não ir visitar os progenitores, apesar do grande amor que lhes tinha, pois eles ficariam tristes já que não apreciaram muito que ela os tivesse deixado para seguir a sua vocação eclesial.
No final do segundo dia de viagem, escolheram um local agradável junto a um rio e lá montaram as suas tendas. Estavam a aquecer-se junto a uma fogueira, quando foram surpreendidas pelo ataque com facas de dois homens. A Francisca reagiu com desassombro e lutou com os bandidos, conseguindo pô-los inanimados após lhes dar com um pau na cabeça. A Mafalda, chorava compulsivamente, assustada, enquanto os dois homens permaneciam desmaiados enquanto lamentava a agressividade da Francisca, argumentando que a vida era sagrada, que era muito grave matar e que só Deus dava a vida e só Ele a poderia tirar. Enquanto a Mafalda aquecia com o próprio cobertor os dois homens junto à fogueira, algumas pessoas chegaram para ajudar e levaram os criminosos para a esquadra da polícia.
Após a noite conturbada, a Mafalda e a Francisca seguiram caminho e decidiram parar num bar junto ao sopé da montanha para tomar alguma coisa quente. No balcão estava um rapaz que teria sensivelmente a mesma idade das raparigas. Após serem servidas, a Francisca comentou com um sorriso no rosto que o moço era muito bonito e bondoso, que o amor era uma coisa maravilhosa e que poderia ser um ótimo marido para ela se não tivesse decidido ser freira. A Mafalda mandou-a calar pois ficara escandalizada com o que dissera e doutrinou sobre a pureza e a obrigação de guardar castidade nas palavras e nas obras e condenou com veemência o sexo fora do matrimónio, o adultério, o divórcio e a homossexualidade.
Continuaram o seu caminho por entre os caminhos estreitos e pedregosos das montanhas e encontraram um pobre homem de muletas que lhes pediu comida. A Mafalda disse-lhe secamente que não tinha mas a Francisca viu umas videiras com uvas num pequeno terreno das cercanias e, trepando por cima do muro, apanhou uns pequenos cachos para os três. Enquanto a Francisca e o mendigo conversavam e se saciavam alegremente sentados em cima do muro, a Mafalda vociferava contra a iniciativa da amiga pois era pecado roubar, era um crime, era injusto e ninguém tinha o direito de ficar com algo que não era seu.
Depois da terceira noite com o céu estrelado como teto, as duas jovens fizeram-se novamente ao caminho. Já não faltaria muito para chegar ao ermita e o cansaço tomava conta delas. A Francisca dizia em tom de brincadeira que ele devia ter feito alguma asneira para ter ido viver para tão longe de tudo e todos. Logo a Mafalda lhe lançou um olhar reprovador, afirmando categoricamente que não se devia levantar falsos testemunhos, pois é pecado tudo quanto envolve a mentira, difamação, maledicência e calúnia. E a coisa ficou por ali.
Mais à frente, viram um riacho que tinham que atravessar. Como estavam ali perto uns rapazolas a tomar banho, a Mafalda escandalizada logo tapou os olhos com as mãos e pediu-lhes que se vestissem para que elas pudessem passar. Os moços, encolhendo os ombros e sorrindo, responderam positivamente enquanto a Francisca se ria da situação. De seguida, a Mafalda, irritada, proferiu um sermão sobre a necessidade de guardar castidade nos pensamentos e nos desejos e criticou o mundo perverso, hedonista e sexualizado. A Francisca sorriu e disse-lhe que já se tinha esquecido da cena enquanto ela parecia que ainda tinha os rapazes na cabeça. E foi chegando aquela que parecia ser a última noite antes do encontro tão ansiado com o ancião eremita. Já cheirava a mar e a meta estava quase à vista.
Aos primeiros raios de sol, lá se levantaram e partiram para a última etapa da caminhada. Ao deixar a montanha, viram uma casa de madeira muito bonita com um jardim cheio de flores de todas as cores, enquanto um cão pequeno ladrava e abanava o rabo. A Francisca derreteu-se toda, dizendo que adorava aquela casa e aquele cachorrinho. A Mafalda não perdeu a oportunidade para criticar a amiga por estar, desta vez, a cobiçar as coisas alheias, lembrando-lhe o perigo da inveja exagerada, da ambição desregrada e da paixão desequilibrada pelas riquezas.
Depois de mais umas horas de caminho, chegaram, finalmente, ao lugar deserto e isolado à beira mar onde vivia o velho ermita que fora aconselhado pela abadessa do convento. O eremita recebeu as jovens com uma inefável serenidade e alegria. À sombra de um pinheiro, sentaram-se os três no muro de um poço e a Mafalda contou-lhe as razões da sua vocação e o merecimento do seu ingresso no convento. Contou detalhadamente toda a viagem e a forma séria com que vivera e meditara nos mandamentos, como pedira a abadessa.
Depois, falou a Francisca e, contando tudo quanto fizera e deixara de fazer, disse que, pelos vistos, não amara a Deus sobre todas as coisas, não invocara o santo nome de Deus em vão, não guardara domingos e festas de guarda, não honrara pai e mãe, quase matara, não guardara castidade nas palavras e nas obras, roubara, levantara falsos testemunhos, não guardara castidade nos pensamentos e nos desejos e cobiçara as coisas alheias. E disse que na verdade sentia-se muito pecadora e não merecia entrar no convento.
O ermita ouviu as duas jovens e, após um longo silêncio, disse pausadamente que a Francisca estava muito perto do Reino dos Céus. Explicou-lhes que as leis estão para as pessoas e não as pessoas para as leis e, apontando para um velho farol ali próximo, disse-lhes que os mandamentos são como que dez faróis que nos orientam e dão referências importantes para as viagens da vida mas não são os destinos finais em si mesmos. Depois, escreveu uma carta à madre abadessa e disse-lhe humildemente que achava que apenas a Francisca revelara autêntico amor cristão a Deus e ao próximo e somente ela tinha verdadeira e sincera vocação religiosa.
[Fotografia ©Sherry Akrami]