AS COISAS DO ALÉM DA AVÓ MARIA
Nada causava maior alegria à Luísa do que ir para casa da avó Maria. Viúva há alguns anos, a idosa era daquelas pessoas com um entusiasmo contagiante e com uma vontade impressionante de viver e, por isso, jamais as adversidades da vida a tinham conseguido abater.
Tinha optado por continuar a viver na sua casinha de sempre na aldeia, abraçada pelos campos cheios de flores e pelas montanhas verdejantes serpenteadas por inúmeros riachos. Ainda cultivava a sua terrinha e cuidava de uma dúzia de galinhas e coelhos e o Tareco era o gatinho que lhe fazia companhia e tornava os seus dias mais animados.
A Luísa gostava muito dos seus avós mas tinha uma predileção especial pela avó Maria, talvez por viver mais longe e sozinha e por lhe parecer que ainda vivia na Pré-história. Pedia frequentemente aos pais para irem visitá-la e eles ficavam felizes com a estima que a filhota nutria pela avó.
Chegadas as férias de verão, a Luísa surpreendeu os pais com um pedido inesperado: queria ir passar uma semana a casa da avó Maria. Os pais da Luísa ficaram algo apreensivos pois era a primeira vez que iam estar tantos dias separados mas acharam interessante já que seria uma experiência simpática e benéfica para todos.
Claro que a avó Maria ficou eufórica com a iniciativa da neta e preparou tudo para que a sua estadia fosse inesquecível, apesar de ter consciência de que talvez lhe fizessem falta as coisas da cidade e a tecnologia que tinha em casa. No entanto, foi a própria Luísa que disse que, durante aqueles dias, não queria ir à internet, nem ligar a televisão nem a rádio, pois queria aproveitar ao máximo a companhia da avó.
Os dias na companhia uma da outra eram muito especiais. A tranquilidade das horas que passavam encantava a Luísa. Nunca tinha ouvido a beleza e a harmonia do silêncio que embrulhava o assobio sereno do vento, o chilrear alegre dos passarinhos e a melodia suave da água das levadas.
Numa noite em que a Luísa estava no jardim com a avó a olhar as estrelas da noite, ela perguntou-lhe:
- Avó tens medo de morrer?
Ela olhou-a com ternura e, enquanto acariciava o Tareco que estava no seu colo, respondeu:
- Não posso dizer-te que a morte não me faz pensar… mas não tenho medo dela.
A Luísa disse:
- Mas tu vives sozinha e o avô já faleceu… Devido à tua idade avançada, deves pensar muitas vezes que a tua morte não andará muito longe…
A avó Maria respondeu:
- Sabes, se as pessoas pensassem mais vezes na morte, viveriam com mais intensidade e integridade a vida. Mas as pessoas não querem pensar na morte e olham o sofrimento, a dor, o sacrifício e a finitude quase como se de um tabu se tratasse. O mal é as pessoas acharem que são eternas aqui na terra e desta maneira.
A Luísa respondeu:
- Mas tudo nasce, vive e morre… não há nada nem ninguém que viva para sempre. Eu tenho medo de morrer… e não quero que tu morras… e não imagino a minha vida sem os meus pais…
A avó Maria respondeu:
- Luísa, a morte não é propriamente uma coisa assustadora. Eu acredito que ninguém nasce por acaso e que quem teve a sorte de nascer jamais morrerá. Somos chamados à eternidade e não deixaremos de ser e existir em Deus que é a verdadeira Vida. Daí que o nosso corpo vai-se transformando ao longo da nossa existência terrena mas aquilo que somos não morrerá nunca mais nem sequer quando o nosso coração parar e a nossa matéria for desparecendo.
A Luísa disse:
- Isso parece interessante e bonito… mas a verdade é que nunca ninguém morreu e depois veio dizer-nos como é que era do lado de lá.
Então, a avó Maria sorriu, levantou-se lentamente e, com o auxílio de uma bengala, dirigiu-se a casa. Trouxe dois livros e disse:
- Olha, a Bíblia tem-me ajudado a pensar nesta coisa da morte. Vê, aqui diz assim: ‘assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e, pelo pecado, a morte, assim também a morte penetrou em todos os homens, pois todos pecaram; portanto, se a morte reinou pelo pecado de um só homem, com muita mais razão aqueles que recebem em abundância a graça e o dom da justiça, reinarão na Vida por meio de um só, Jesus Cristo’. E, aqui à frente diz assim: ‘são coisas que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem, o que Deus preparou para aqueles que O amam’.
A Luísa respondeu:
- Pois… não temos capacidade para perceber bem o que nos espera do outro lado. Tudo o que pensamos pela racionalidade são puras especulações ou suposições… mas, como se diz no Principezinho, o ‘essencial é invisível aos olhos’ e ‘só se vê bem com o coração’… Como não conhecemos nada mais a não ser esta vida e esta forma de existir, achamos que outra coisa qualquer poderá ser pior… o desconhecido causa apreensão e desconfiança… por isso, a morte pode ser mesmo a porta para uma vida melhor, a verdadeira vida…
A avó Maria respondeu:
- É isso mesmo… Olha, trouxe um outro livro que é o Catecismo e a este propósito fala-se de uma coisa chamada Novíssimos. São a morte, o juízo particular, o purgatório, o inferno e o paraíso.
A Luísa, que já tinha ouvido falar do céu e do inferno, quis saber mais sobre esses temas estranhos e ela mesmo quis ler em voz alta o que aquele livro dizia. A avó Maria procurou a página onde se falava da morte e apontou-lhe o início de um parágrafo. A Luísa leu:
- ‘O cristão, que une a sua própria morte à de Jesus, encara a morte como uma chegada até junto d’Ele, como uma entrada na vida eterna. A Igreja, depois de, pela última vez, ter pronunciado sobre o cristão moribundo as palavras de perdão da absolvição de Cristo e pela última vez o ter marcado pela unção fortificante e lhe ter dado o próprio Cristo como alimento para a viagem, fala-lhe com suave segurança: Parte, ó alma cristã, em nome do Pai todo-poderoso que te criou…’
Depois de pensar um pouco e contemplar o céu repleto de estrelas cintilantes, voltou o seu olhar para o livro e leu o parágrafo relativo ao juízo que a avó Maria apontou:
- ‘Cada homem recebe, na sua alma imortal, a retribuição eterna logo depois da sua morte, num juízo particular que põe a sua vida na referência de Cristo, quer através duma purificação, quer para entrar imediatamente na felicidade do Céu, quer para se condenar imediatamente para sempre’.
A Luísa suspirava profundamente e a verdade é que sentia o mistério a adensar-se e a curiosidade a aumentar desmedidamente. De seguida, quis ler o que se dizia sobre o purgatório:
- ‘Os que morrem na graça e amizade de Deus, mas não de todo purificados, embora seguros da sua salvação eterna, sofrem depois da morte uma purificação, a fim de obterem a santidade necessária para entrar na alegria do Céu. A Igreja chama Purgatório a esta purificação final dos eleitos, que é absolutamente distinta do castigo dos condenados’.
Nunca tinha ouvido falar daquela situação insólita. Mas queria saber mais e mais sobre o assunto. Debruçou-se logo sobre a temática do inferno indicada pela avó e leu pausadamente:
- ‘Morrer em pecado mortal sem arrependimento e sem dar acolhimento ao amor misericordioso de Deus é a mesma coisa que morrer separado d'Ele para sempre, por livre escolha própria. E é este estado de autoexclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados que se designa pela palavra ‘inferno’’.
Sem mais delongas, quis descobrir o que se afirmava sobre o paraíso:
- ‘Os que morrem na graça e amizade de Deus, perfeitamente purificados, vivem para sempre com Cristo. São para sempre semelhantes a Deus, porque O vêem ‘tal como Ele é’, face a face… Esta vida perfeita com a Santíssima Trindade, esta comunhão de vida e de amor com Cristo, com a Virgem Maria, com os anjos e todos os bem-aventurados, chama-se ‘Céu’. O Céu é o fim último e a realização das aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva’.
A avó Maria sorria com o ar intelectual compenetrado com que a Luísa pesquisava aquelas questões tão complexas para a sua tenra idade. Era uma linguagem difícil e deveras enigmática. Então, disse-lhe:
- Luísa há um provérbio aborígene que diz que somos todos visitantes deste tempo e deste lugar que é a Terra. Os nativos da Austrália acham que estamos de passagem e que o nosso objetivo é observar, crescer e amar e que depois vamos para casa. A morte não é, de facto, uma espécie de sono eterno mas o início da imortalidade. Na jornada da vida, a morte oferece-nos o caminho rumo àquelas realidades que dão sentido à existência. Não acredito nessa coisa da reencarnação que algumas culturas defendem. Tenho fé que mudaremos para uma situação melhor e mais bonita pois estaremos com Deus.
Então, a Luísa disse:
- Começo a perceber… no fundo é como a história da lagarta que se transforma em borboleta. Aprendi na escola essa coisa da metamorfose… Sabes, há quatro fases: ovo, larva, pupa e estágio adulto. Apenas quando o bichinho feio produz fios de seda para se proteger dos predadores e depois para construir o verdadeiro casulo, acontecem as grandes mudanças e o seu corpo transforma-se definitivamente. Quando a bela borboleta está pronta, rompe o casulo e liberta as asas. Então, tal como a lagarta precisa de se transformar para chegar a ser uma bonita borboleta, a vida humana precisa da morte para nos levar à verdadeira vida na eternidade.
A avó Maria respondeu:
- Excelente metáfora… As coisas que tu sabes… A propósito… sabes que o grão de trigo se for lançado à terra e não morrer, não poderá dar fruto? É assim a vida. A morte ensina-nos a dar valor ao tempo e a percebermos como é precioso. Se nós soubéssemos que poderíamos morrer a qualquer momento, duvido quer fizéssemos algumas coisas que estamos a pensar fazer ou que disséssemos certas coisas que estamos a pensar dizer a alguém. Por outro lado, Luísa, não deixes de fazer ou dizer aquilo que a morte te pode impedir de fazer ou dizer.
A Luísa disse, então:
- Já não tenho medo da morte… Já não tenho medo de nada… que fixe. Acho que a vida terrena é como a primeira página de um livro que somos nós. A morte é o ponto final do último parágrafo dessa folha. Ela é o fim e o início da vida e o nosso céu ou o nosso inferno já o começamos a construir e a viver aqui na terra. Acho que a chave da felicidade e da eternidade é o Amor. Quem não ama não vive plenamente. Quem já desistiu de amar já está morto.
A avó Maria abraçou a neta e, apontando para uma estrela cadente, disse-lhe:
- Os homens temem a morte como as crianças temem a escuridão da noite. Não podemos é esquecer-nos de que precisamos de descansar e preparar-nos para o novo dia. O pior que nos pode acontecer não é perder a vida. A maior perda é o que morre no nosso coração enquanto vivemos. Não levaremos nada mais para a outra margem da vida a não ser a maneira como amámos. Como dizia Mahatma Gandhi, ‘aprende como se fosses viver para sempre e vive como se fosses morrer amanhã’.
Conto.
O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.