Conto: As chaves que abrem todas as portas
O aniversário da Mafalda aproximava-se e era evidente a sua ansiedade e nervosismo. Como dinheiro era coisa que não faltava por aquelas bandas, os pais contratavam sempre uma empresa de organização de eventos e todos os anos ofereciam à filha a festa mais original e divertida que se podia imaginar.
No entanto, sentiam que já não sabiam como surpreender a filha. Tinham consciência de que a tinham habituado a ter tudo sem esforço algum e isso não era propriamente saudável. Preocupava-os, também, que ela andasse tão crítica em relação a tudo e todos e, pior que tudo isso, que as azáfamas do dia-a-dia e os compromissos quase os impedissem de ter tempo para estarem juntos.
Então, decidiram fazer algo diferente. Tomaram a decisão de que naquele aniversário não haveria prendas e que não iriam trabalhar para passar o dia com a filha. A Mafalda não ficou satisfeita com a surpreendente ideia dos pais e deu a entender que aquela seria a pior festa de aniversário de sempre.
De manhazinha, saíram da cidade e foram dar um passeio pelas montanhas. Ao chegarem ao topo, sentaram-se os três a olhar a paisagem. Inesperadamente, o pai da Mafalda deu-lhe uma chave para a mão e pediu-lhe que escutasse o vento e o chilrear dos passarinhos. Depois, disse:
- Filha, esta é a chave do silêncio. Só ela poderá abrir as portas da consciência para que possas encontrar-te a sós contigo mesma e consigas discernir os caminhos que queres trilhar. No meio do corrupio e stresse do quotidiano, é difícil parar para pensar e refletir na vida mas o silêncio é a chave para uma existência em plenitude e vivida em autêntica liberdade e responsabilidade.
A Mafalda preferiu permanecer calada até porque ainda estava zangada com aquele programa de aniversário. Contudo, estava a gostar de ouvir a harmoniosa melodia da natureza que ajudava a contemplar a paisagem como se de uma pintura se tratasse. A mãe olhou para ela, deu-lhe um beijo e disse:
- Vês, lá em baixo, a nossa cidade tão pequenina e a nossa casa lá no meio? Muitas vezes, precisamos de nos afastar das coisas para as ver melhor. Nós não somos o centro do mundo e à nossa volta há pessoas e vidas como nós e problemas bem maiores do que os nossos. É útil, importante e necessário não tomar decisões sem pararmos e fazermos silêncio no nosso coração pois só ele vê mais longe e com mais realismo.
A Mafalda levantou-se e caminhou sozinha por ali perto, enquanto pensava nas palavras dos pais. Decidiu dar um grito e a sua voz repercutiu-se algures na cadeia montanhosa. Achou piada e voltou a produzir outros sons e, da mesma forma, o eco fazia-se ouvir de forma imponente. Deu gargalhadas, imitou sons de animais, disse nomes de pessoas de quem gostava e disse palavras bonitas e outras feias.
Os pais da Mafalda riam-se a bandeiras despregadas e decidiram aproximar-se. Deram-se conta de que havia muito tempo que não riam juntos e deram um grande abraço. O pai pôs a mão ao bolso e retirou outra chave e deu-lha, dizendo:
- Mafalda, toma esta chave. É a chave do sorriso. Só ela poderá abrir as portas do otimismo, da alegria, da esperança e da confiança. Os sons que produziste fizeram eco mas, na verdade eles são a metáfora da vida. Se sorrires para a vida, ela sorrir-te-á, se fores bom com os outros, a vida será boa para ti, se não desistires nunca de lutar pelo que acreditas, a vida também não se cansará de ajudar-te a concretizar os teus sonhos e projetos.
E a mãe da Mafalda acrescentou:
- A vida gosta de fazer ricochete daquilo que somos, sentimos e pensamos. A vida devolve o amor, a amizade e a felicidade bem como as invejas, as maledicências e é o reflexo do que investimos e construímos. Sorri muito. Sorri para os demais pois isso quebra o gelo que afasta as relações e abre muitas portas, aproximando as pessoas e abrindo as suas almas.
A Mafalda estava a começar a gostar do dia do seu aniversário e apertava com muito carinho as duas chaves que os pais lhe tinham oferecido. Como se aproximava a hora do almoço, decidiram ir almoçar a uma aldeia próxima que tinha um restaurante famoso.
Sentados à mesa, a Mafalda manifestava-se encantada com a decoração sóbria e com bom gosto do espaço mas, espreitando pela janela, não gostou de ver a rua e as casas vizinhas todas sujas. Enquanto apreciava uma pintura da Última Ceia de Leonardo da Vinci por cima da lareira da sala, o pai deu-lhe outra chave e disse:
- Mafalda, chegou o momento de te dar esta chave. É a chave da oração. Assim como precisamos de comer para viver, também necessitamos de nos alimentar da Palavra de Deus. Na verdade, só Deus pode dar-nos o sentido da vida e só Ele basta para nos realizarmos e sermos felizes. A oração permite-nos estar com Ele, ouvindo-O e falando-lhe das coisas que nos alegram e daquelas que nos entristecem. Ele não quer estar fechado num qualquer sacrário de uma igreja mas caminhar os nossos caminhos e trilhar a nossa história no nosso aqui e agora. Com Ele, a vida ganha outra cor e vemos as coisas e as pessoas de outra forma.
A mãe, sorrindo, disse:
- É verdade, filha… e já agora… não são as casas e as ruas que estão sujas mas os vidros da janela. Se limparmos a janela, verás que tudo será diferente. É como termos os óculos sujos e acharmos que está escuro ou nevoeiro. A oração ajuda-nos a purificar a nossa vista na verdade e na transparência, a saber observar a vida com a sinceridade do coração e a olhar a humanidade com os olhos misericordiosos de Deus que só sabe amar.
A Mafalda estava a adorar estar com os pais no seu dia de aniversário e, depois de almoço, foram calcorrear a aldeia. Chegados a um pequeno jardim, sentaram-se num banco ao lado de uma mesa de pedra. A mãe deu-lhe uma saca com muitas peças de puzzle pois sabia que fazer puzzles era o seu passatempo predileto quando era mais miúda. A mãe disse-lhe que se tratava de um mapa do mundo e que podia tentar fazê-lo enquanto descansavam um pouco.
A rapariga aceitou de bom grado o desafio mas reconheceu a dificuldade da enorme tarefa que tinha de realizar, tal a quantidade incrível de peças e os meticulosos pormenores da imagem final. No entanto, apercebera-se que na parte de trás da figura do planisfério havia uma outra imagem que parecia mais simples e, então, optou por fazer ao contrário e juntar as peças do outro lado.
Os pais olhavam-se com um olhar satisfeito e cúmplice e a Mafalda em pouco mais de meia hora tinha o puzzle pronto e, para sua surpresa, viu que era a fotografia dos três diante da sua casa. Como as peças estavam tão bem encaixadas, virou puzzle e do outro lado estava o mapa perfeitamente construído. A mãe felicitou-a pela esperteza e sabedoria na realização do trabalho e ofereceu-lhe uma chave, dizendo:
- Mafalda, esta é a chave da família. Diante de ti tinhas o mundo desfeito, desorganizado e confuso, com as peças todas amontoadas num caos total e deste-te conta de que a única forma de resolver a situação estava na forma como se olhava o problema. Do outro lado residia a única maneira de consertar o planeta: a família. A família é a célula base da sociedade e a transformação do mundo começa na nossa casa pois temos que ser aquilo que desejamos para a humanidade. E não te esqueças que há cinco palavrinhas mágicas na família e nas relações humanas em geral: ‘olá’, ‘com licença’, ‘por favor’, ‘obrigado’ e ‘desculpe’…
O pai acrescentou:
- Eu sabia que serias capaz de resolver este desafio. Somos peças deste grande puzzle e todos são necessários para mudar o mundo. Se eu deixar de fazer alguma coisa que está ao meu alcance, segundo as minhas capacidades e talentos, o mundo fica mais pobre e é como se o puzzle ficasse incompleto e irremediavelmente estragado. A família é a verdadeira escola da vida para a edificação de um mundo mais humano e fraterno. O lar é o nosso castelo que nos acolhe e prepara para as batalhas da vida. Conta sempre connosco!
A Mafalda já não cabia em si de alegria com as descobertas e lições que estava a receber dos pais naquele dia. Ao chegar a casa, e já com o sol a esconder-se no horizonte, viu uma senhora que parecia imigrante com um bebé ao colo e a pedir esmola às pessoas da rua. Enquanto entrava em casa, lamentou-se aos pais das injustiças deste mundo, da pobreza que ainda tocava milhões de pessoas, da falta de solidariedade entre os povos e da irresponsabilidade dos governantes e políticos. Os pais da Mafalda olharam-na com ternura e ofereceram-lhe a última chave do seu dia de aniversário. No entanto, não quiseram dar-lhe um nome como haviam feito com as outras.
Ao entrar no seu quarto, sentou-se na cama com as cinco chaves na mão. Achava estranho que a última chave não tivesse um nome e, olhando para si mesma no espelho, pensava na mulher com o filho ao colo. E disse para a sua imagem refletida no espelho:
- Meu Deus, como sou tonta… sou eu que tenho que ajudar aquela senhora. A solução para esta situação está nas minhas mãos… a chave para abrir a porta da felicidade e do bem-estar desta família está dentro de mim… esta é a chave do Amor.
A Mafalda, mais sorridente e determinada que nunca, correu a procurar aquela senhora e o seu filho e convidou-os a ir jantar a sua casa. Ofereceram-lhes roupas e brinquedos e, mais importante que isso, disponibilizaram-lhes um anexo que tinham ao fundo do jardim de casa para viverem pelo tempo que precisassem pois tinham fugido da fome e da guerra que dilacerava o seu país. O pai da Mafalda ofereceu um emprego à senhora na sua empresa e a sua esposa e filha ofereceram-se para ajudar a tomar conta da criança.
Aquele tinha sido o dia de aniversário mais bonito da vida da Mafalda e as cinco chaves que havia recebido transformaram a sua vida. Os pais não lhe tinham dado nada valioso mas tinham-se dado a si mesmos, oferecendo-lhe o seu tempo e os seus ensinamentos.
A Mafalda arranjou um chaveiro com a fotografia da sua família e sempre que lhe perguntavam que chaveiro era aquele levava para todo o lado, ela sorria, ficava com os olhos brilhantes e respondia que eram as chaves que abriam todas as portas.
Conto.
O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.