A Receita Secreta da Felicidade

Como tantos outros idosos da cidade, o Sr.António passava as tardes de todos os dias a jogar às cartas no café da esquina ou no jardim mais próximo do bairro onde vivia. Com os seus muitos amigos de longa data, amontoavam-se à volta de uma mesa como se não houvesse mais nada nem ninguém no mundo inteiro. Pareciam um enxame de abelhas à entrada de uma colmeia e todos comentavam entusiasmados as jogadas, enquanto os jogadores do momento batiam as cartas com a experiência e a manha de toda uma vida.
 
Todos os dias, à mesma hora, trocavam umas provocações sobre o campeonato nacional de futebol, falavam do tempo, das últimas notícias dos jornais e queixavam-se das mazelas da idade. Mas aquilo que nunca podia faltar era a surpresa gastronómica do Sr.António.
 
Tinha sido cozinheiro toda a sua vida num restaurantezinho da periferia da cidade e a sua maior felicidade era sentir a satisfação dos clientes. Tinha ficado viúvo muito cedo e não tivera filhos. Apesar do seu reconhecido talento pela culinária, nunca tivera um salário de jeito e não conseguira enriquecer.
 
Todas as santas tardes, o Sr.António levava para os seus amigos uns petiscos que preparava religiosamente nas manhãs de cada dia. O saco que levava era aberto com toda a ternura do mundo e os seus olhos brilhavam só de ver o contentamento de todos os seus amigos que sempre lhe agradeciam a generosidade, com umas palmadinhas nas costas.
 
No entanto, não deixava de ser intrigante para todos como é que o Sr.António tinha pachorra para todos os dias gastar tempo a fazer os seus cozinhados para os seus amigos sem pedir nunca nada em troca e sempre com um sorriso no rosto. Era evidente que parecia ser o menos endinheirado e letrado do grupo mas era de longe a melhor alma de toda aquela gente.
 
Um dia, um dos compinchas do grupo, o Sr.Artur, atreveu-se a perguntar-lhe porque é que ele fazia questão de todos os dias levar o lanche mas ele esquivou-se, justificando-se apenas com o argumento de que eram seus amigos e isso bastava. No dia a seguir, o Sr.Alfredo insistiu no assunto do dia anterior e questionou-o sobre os seus escassos recursos económicos e, mais uma vez, fugiu do tema, dizendo que se não tivesse dinheiro não poderia trazer aqueles pitéus.
 
Aquelas perguntas que pareceram embaraçosas para o Sr.António mas que constituíam temática diferente da habitual nas jornadas de convívio dos amigos reformados, aguçou a curiosidade de todos. Então, o Sr.Artur e o Sr.Alfredo decidiram investigar.
 
No dia seguinte de manhãzinha, sem que o amigo se desse conta, colocaram-se em posição discreta e favorável à observação das suas movimentações. Seguiram-no e viram-no com uma cesta na mão a levar uma refeição quente para um sem-abrigo que costumava passar a noite uns quarteirões acima da sua rua. O Sr.Artur e o Sr.Alfredo ficaram sensibilizados com o coração enorme do amigo. Afinal, era pobre mas arranjava sempre maneira de ajudar quem era ainda mais pobre, ao contrário deles próprios que, sendo bem mais ricos, eram pouco solidários com aqueles que mais precisam.
 
Depois de contarem o que tinham visto aos amigos, o Sr.Carvalho e o Sr.Amândio quiseram também pesquisar o Sr.António. Surpreendentemente, ao fim da tarde viram-no entrar na biblioteca do bairro e aperceberam-se que estudava. Ficaram a saber que, a par da sua profissão no restaurante, em horário pós-laboral conseguira terminar o ensino secundário e já fizera um curso superior, estando agora a meio do segundo. Eles ficaram incrédulos pois o amigo nunca havia revelado sobranceria, orgulho ou arrogância com eles e sempre se manifestara tao humilde, meigo, modesto e simples. A descoberta caiu que nem uma bomba no seio do grupo e a admiração pelo Sr.António aumentou ainda mais.
 
Os amigos do Sr.António estavam convencidos que as surpresas boas não acabariam por ali e decidiram continuar a procurar novos dados do seu quotidiano. E não foi preciso esperar muito. Para estupefação do Sr.Rui e do Sr.Andrade, o Sr.António padecia de uma doença grave havia vários anos e precisava de ir fazer tratamentos frequentes ao hospital. Pelo que ficaram a saber, aquela maleita apoquentava-o muito pois causava-lhe muito sofrimento. Mas era a sua força de vontade, esperança e determinação que estava a ser decisiva para conseguir vencer aquela aflitiva e dolorosa situação. Jamais haviam desconfiado que o amigo tivesse qualquer problema de saúde pois talvez não quisesse que se preocupassem consigo.
 
A partilha daquela descoberta inquietara o grupo de reformados mas quiseram respeitar o silêncio do Sr.António. O Sr.Antunes e o Sr.Aníbal quiseram ser os próximos a ir à procura de novidades e não foi preciso muito para encontrar o amigo. Ouvindo as buzinas da polícia e dos bombeiros, foram ver o que havia acontecido e numa rua próxima viram um reboliço pouco habitual. Uma casa tinha sido assaltada e uma senhora gritava da varanda com o filho ao colo. Por acaso, lá estava o Sr.António e tinha sido ele a chamar as autoridades pois passava em frente à casa, quando os ladrões saiam da casa e se punham em fuga de carro. O seu sentido de verdade e justiça era notório e tentava ajudar a polícia a identificar os assaltantes, enquanto dava conforto à família. O Sr.Antunes e o Sr.Aníbal estavam comovidos com o amigo que não ficou comodamente no seu canto e não hesitou em estar do lado do cumprimento da lei.
 
O grupo do Sr. António já não tinha palavras para descrever e classificar a integridade e altruísmo do amigo. E mais embasbacados ficaram quando o Sr.Azevedo e a esposa disseram que tinham visto o Sr.António naquela manhã a apanhar um cão que tinha sido atropelado e a levá-lo ao veterinário e parecia que ia ficar com ele pois estava abandonado. A D.Maria, que também costumava ir ao café à tarde, disse logo que o Sr.António tinha um coração de ouro e que já ouvira dizer que quase todos os dias visitava e fazia companhia a pessoas doentes, deficientes e velhinhos.
 
As conversas sobre o Sr.António decorriam no maior secretismo e, apenas durante as tardes de jogos de cartas, ele não era o assunto de diálogo. Gostavam e respeitavam demasiado o Sr.António para mexer nos temas que ele nunca quisera abordar. Entretanto, todos continuavam a deleitar-se com as suas iguarias e a testemunhar a felicidade imensa que o amigo revelava sempre que estava com eles e partilhava o seu talento culinário.
 
Noutro dia, os amigos do Sr.António não precisaram de sair da mesa de jogo para conhecer mais uma das suas facetas. Aquando da passagem por ali perto de duas jovens universitárias, alguns dos reformados lançaram uns piropos e não evitaram comentários pouco adequados e logo o Sr.António se insurgiu humildemente contra os amigos e em nome do grupo foi ter com elas pedindo desculpa. Como alguns amigos estavam a achá-lo um anjinho, experimentaram enganá-lo no jogo fazendo batota a ver se se dava conta. No final do jogo, disse à equipa vencedora que tinha percebido tudo mas que preferira vê-los contentes por haverem vencido. Todos ficaram boquiabertos com a sua bondade e pureza de coração.
 
No dia a seguir, o Sr.António não estava à hora do costume e isso causou perplexidade e preocupação em todos. Talvez tivesse ficado chateado com os episódios do dia anterior e decidiram ir procurá-lo. Não tardaram em encontrá-lo numa ruela da cidade, rodeado de rapazolas que haviam andado à pancada e discutiam por causa de um jogo de futebol. O Sr.António havia chegado a tempo e tinha evitado uma batalha de proporções incalculáveis pois já se viam miúdos ensanguentados. Os amigos do Sr.António reforçaram a opinião que tinham do seu espírito dialogante, conciliador e pacifista e foram juntos para mais uma tarde de convívio entre cartas e rissóis.
 
Ao fim da tarde e após as despedidas cordiais do costume, quatro homens cercaram o Sr.António para o roubar e, dando-se conta que ele os vira no dia do assalto à senhora, por entre empurrões, insultaram-no e injuriaram-no, ameaçando-o de uma tareia valente se os denunciasse à polícia. Apercebendo-se da situação, os amigos do Sr.António telefonaram à polícia que rapidamente apareceu e procedeu à detenção daquele bando armado.
 
Os amigos do Sr.António estavam preocupados consigo e quiseram acompanhá-lo a casa. Aceitou com o sorriso de sempre. Não sabiam onde vivia e, ao chegar a sua casa, aceitaram o seu convite para entrar. Era uma casa muito pequena e simples mas muito bem arranjada e limpa. Beberam um chá e comeram uns bolinhos de sabor a limão e, como não havia cadeiras todos quiseram sentar-se no chão aos pés do amigo. Disseram-lhe que o haviam andado a seguir há uns dias e estavam comovidos com a pessoa fantástica que era. E perguntaram-lhe porque é que era assim tão feliz. Ficou longo tempo em silêncio. Passados uns momentos, apontou para uma moldura que estava em cima de uma mesa. Tinha uma folha rasgada da Bíblia. Era o trecho das Bem-aventuranças que dão início ao Sermão da Montanha de Jesus Cristo. Levantou-se, foi buscar a moldura e leu em voz alta e com toda a serenidade, o que estava escrito:
 
- ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sereis quando vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem toda a espécie de calúnias contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus’.
 
Com lágrimas nos olhos e com o sorriso mais singelo do mundo, disse que tinha sido a sua mulher que arrancara aquela folha uns minutos antes de morrer nos seus braços e lhe dissera que, apesar de ser um excelente cozinheiro, a melhor receita para a felicidade estava ali escrita. E concluiu:
 
- As Bem-aventuranças são a síntese mais bela e profunda do Cristianismo. Mahatma Gandhi disse que se toda a literatura ocidental se perdesse e restasse apenas o Sermão da Montanha, nada se teria perdido. Por isso, o grande tesouro da minha vida são as Bem-aventuranças. São os ingredientes essenciais da minha receita secreta da autêntica e verdadeira Felicidade.
 
Então, fez-se luz naquele grupo de amigos do Sr.António e compreenderam finalmente o sentido de tudo quanto tinham testemunhado. Abraçaram-no, emocionados, e quiseram ser e fazer como ele.

Paulo Costa

Conto.

O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.

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