A poção mágica das palavras

O João era de poucas palavras. De ar sisudo e distante, preferia estar no seu canto a falar com os seus botões e longe de confusões. Tinha poucos amigos. Aliás, nem ele os queria ter nem eles queriam sê-lo. Por isso, era um jovem frio e racional e a única coisa que o entusiasmava era a magia.
 
Se alguém conseguia falar com ele, só o ouvia conversar de ilusionismo e dos grandes mágicos que admirava, como o Grande Houdini e David Copperfield. Adorava as combinações de proezas atléticas e artes mágicas que deram origem aos mundialmente famosos números de fuga do primeiro e os truques com mesclas de ilusionismo e histórias que tornaram o segundo o mágico de maior sucesso comercial de toda a história.
 
O João lera todos os livros da saga Harry Potter e o seu quarto estava repleto de pósteres de mágicos e ilusionistas famosos. Estava sempre a ver filmes e séries televisivas sobre magia, ficção e fantasia e tinha uma predileção especial por pesquisar tudo o que estivesse relacionado com bruxas, feiticeiros e magos.
 
A verdade é que, com o que foi aprendendo na internet e com o material de magia que os pais lhe foram comprando ao longo dos anos, foi aprimorando os seus truques e tornou-se um especialista em vários domínios da ilusão. Inseparável da sua cartola e varinha mágica, conseguia tirar moedas das orelhas das pessoas, fazia aparecer e desaparecer inúmeros objetos de todo o lado, realizava infindáveis truques com cartas e até lograva exercícios mentais inacreditáveis de hipnose, levitação e adivinhação.
 
Quando queria alguma coisa de alguém, ou ordenava formalmente ‘Abre-te, sésamo!’, a famosa frase mágica usada por Ali-Babá em ‘As Mil e Uma Noites’ como senha para que a porta do esconderijo dos 40 ladrões se abrisse automaticamente, ou pronunciava solenemente ‘Abracadabra’, a célebre palavra usada como encantamento por mágicos de palco, principalmente por ilusionistas. Só que, normalmente, ninguém achava piada nenhuma.
 
O João, mergulhado nas suas coisas, dava muito pouca importância à família e às relações de companheirismo e amizade. Não sabia nem queria dialogar com ninguém, pois julgava-se sempre superior e mais inteligente e considerava as atividades e brincadeiras dos jovens de uma infantilidade de todo o tamanho e sem interesse algum.
 
Talvez sem ter muita consciência disso, era, muitas vezes, ingrato, indelicado, rude, e arrogante nas suas conversas com os demais e isso afastava quase toda a gente.
 
Um dia, a tia Matilde, que era uma das poucas pessoas que ainda o suportavam, ofereceu-lhe um presente. Era uma pequena caixa que estava decorada com um bonito papel esverdeado e envolta com um laço amarelo cheio de estrelinhas pretas e brancas.
 
O João agarrou friamente a caixa, colocou-a debaixo do braço e, cabisbaixo, foi para o seu quarto para ver do que se tratava. Tinha escrito ‘Caixa Mágica’. Quase com desdém, abriu a caixa ligeiramente e, para sua surpresa, lá dentro havia apenas muitos pequenos papéis. Papeizinhos com letras de todas as cores, feitios e tamanhos.
 
O João não sabia o que pensar daquilo e só lhe ocorreu que a tia devia estar maluca devido à idade avançada. Contudo, despejou a caixa em cima da cama e pôs-se a juntar algumas letras para formar palavras.
 
Escreveu o seu nome, o nome dos seus pais e, ainda, os nomes dos mágicos e ilusionistas que mais apreciava. De seguida, juntou as letras para formar algumas palavras bonitas e outras menos simpáticas. Sem grandes truques e paulatinamente, tomou consciência do dom da liberdade e da relevância das escolhas. Quase sem dar por isso, sentiu que estava dentro de si e nas suas próprias mãos a possibilidade e a decisão. Nele residia a opção pela vida ou pela morte, pelo amor ou pelo ódio, pela escravidão ou pela liberdade, pela bondade ou pela maldade. Aprendera a escrever e só ele podia decidir o caminho a seguir. A felicidade não era uma ilusão nem uma fantasia e uma existência humana realizada em plenitude era bem real e concretizável.
 
Enquanto estava nas suas divagações, deu-se conta que ainda havia dentro da caixa mágica dois pequenos envelopes colados com fita-cola. Um envelope de cor azul dizia ‘Palavras Mágicas’. Abriu-o ansiosamente e viu 5 papéis dobrados em quatro. Então, desdobrou-os calmamente e viu que cada um deles tinha escrita uma palavra: ‘Bom dia’, ‘Com licença’, ‘Desculpa’, ‘Por favor’, ‘Obrigado’.
 
O João olhou para cada uma das palavras e, esperto como era, depressa se apercebeu das intenções da tia Matilde. E lembrou-se, sem grande esforço, de mil e uma situações em que a ausência daquelas palavrinhas mágicas no seu dia-a-dia fez, lamentavelmente, toda a diferença. Um ‘olá’, um ‘bom dia’, um ‘boa tarde’ ou um ‘boa noite’ poderia, sem dúvida, quebrar o gelo e encurtar distâncias entre as pessoas. Um ‘com licença’ poderia abrir as portas do respeito e da cooperação. Um ‘desculpa’ poderia promover uma relação cordial e fraterna. Um ‘obrigado’ poderia potenciar a amizade e a solidariedade.
 
Nunca tinha passado pela cabeça do João o poder que as palavras encerravam. Aquelas simples expressões tinham efetivamente um potencial mágico inacreditável. Deu-se conta de que possivelmente apenas uma pequena percentagem dos conflitos e desavenças seriam provocadas por diferenças de opinião. A esmagadora maioria das quezílias entre pessoas talvez fosse desencadeada apenas pelo tom de voz errado ou desadequado e pela ausência daquelas palavras mágicas. Talvez a forma como se diziam as coisas fosse muito mais importante do que propriamente aquilo que se dizia.
 
Com um sorriso no rosto, coisa que já não fazia há muito tempo, e, impulsionado por uma curiosidade crescente, o João abriu o outro envelope, de cor encarnada. Tinha um só papel com o título ‘Regras mágicas da Convivência’ e continha duas colunas com várias frases. Então, leu-as vagarosamente e em voz alta para mastigar o seu sentido:
 
- Chegaste? Cumprimenta; Já vais? Despede-te; Recebeste um favor? Agradece; Prometeste? Cumpre; Ofendeste? Pede desculpa; Não entendeste? Pergunta; Tens? Partilha; Não tens? Não invejes; Sujaste? Limpa; Não gostas? Respeita; Amas? Demonstra; Não vais ajudar? Não atrapalhes; Estragaste? Arranja; Pediste emprestado? Devolve; Falaram contigo? Responde; Acendeste? Apaga; Abriste? Fecha; Não é teu? Pede permissão; Compraste? Paga; Não sabes como funciona? Não mexas; Não sabes fazer melhor? Não critiques.
 
O João nunca se tinha apercebido como a magia mais importante não se aprendia propriamente nos livros, nos computadores ou na televisão. Na verdade, havia palavras que eram autênticos truques magnéticos para uma relação saudável e cordial com todos e eram a única maneira de ser e de estar na vida.
 
Então, o rapaz decidiu ir ter com os pais e falar com eles. Ao chegar à sua beira, disse-lhes, entre lágrimas:
 
- Olá, bom dia, pai e mãe! Peço-vos licença para me ouvirdes… Desculpem-me por tanta coisa… Por favor! Muito obrigado por me amarem tanto.
 
O pai e a mãe do João entreolharam-se, sorriram com ternura e abraçaram-no. Depois, disseram-lhe:
 
- Ou estás doente ou está um santo para cair do altar… Bem, mas falando a sério… pelos vistos já abriste o presente da tia Matilde…
 
Ele respondeu:
 
- É verdade… tão absorto nas minhas cenas da magia e, afinal, há truques tão simples e tão bonitos que eu ainda não conhecia… Há mesmo palavras com um condão mágico impressionante!
 
O pai do João respondeu:
 
- É verdade. As palavras são capazes do melhor e do pior. Pode ser a mais terrível arma e podem ser o mais sublime perfume. E lá diz o provérbio popular ‘Apanham-se mais moscas com mel do que com fel’. Tudo se pode dizer… mas tudo deve ser dito com verdade e delicadeza. Não temos o direito de julgar ninguém e, quando afirmamos algo de alguém quase que lhe devíamos pedir desculpa pela ousadia e pelo risco de estarmos errados.
 
A mãe do João acrescentou:
 
- As palavras não são pedras mas quando são atiradas podem magoar. Mas há palavras que nos beijam como se tivessem boca. Temos dois olhos, duas orelhas, duas narinas… mas uma boca só. Quando puderes, procura a história das três peneiras do filósofo Sócrates… Talvez digamos muita coisa que não sabemos se é verdade, temos a consciência que não é bom e temos a noção que não serva para nada nem é útil a ninguém. E nunca te esqueças que as atitudes são mais importantes que as palavras e, muitas vezes, o silêncio fala mais do que mil palavras. Nunca devíamos dizer nada que não fosse mais bonito que o silêncio. Nada como a boa educação…
 
O João, enquanto assentia com a cabeça, viu chegar a tia Matilde. Agarrou-se a ela e agradeceu-lhe a caixa mágica. Ela respondeu:
 
- Ainda bem que gostaste… Sabes que, como diz o povo, ‘a boa educação é uma moeda de ouro que em todo o lado tem aceitação’ e ‘cortesia de boca muito vale e pouco custa’… Acho que precisavas da caixa que te ofereci para fazeres ainda mais e melhor magia… Os árabes dizem assim: ‘Não digas tudo quanto sabes, não faças tudo quanto podes, não creias em tudo quanto ouves, não gastes tudo quanto tens. Porque quem diz tudo quanto sabe, quem faz tudo quanto pode, quem crê em tudo quanto ouve, quem gasta tudo quanto tem… Muitas vezes diz o que não convém, faz o que não deve, julga o que não vê, gasta o que não pode.’
 
O João respondeu:

- Já não me sentia tão bem e não dialogava tanto há muito tempo… As palavras certas e oportunas fazem mesmo a vida ter mais magia… no fundo ser mais humana. Descobri a poção mágica das palavras… Yupi! A minha vida vai mudar… e o verbo que vou usar não é ‘tentar’ mas ‘querer’ mudar. E não pensem que eu não conheço provérbios… ‘A palavras loucas, orelhas moucas’… ‘as palavras são de prata e o silêncio é de ouro’, ‘palavras leva-as o vento’, ‘se as palavras arrastam, os exemplos arrastam’ e… ‘para bom entendedor meia palavra basta’! Tenho dito.

Paulo Costa

Conto.

O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.

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