O Natal de Maria

Mariologia 23 dezembro 2020  •  Tempo de Leitura: 12

Leão I Magno, o papa que em 453 conseguiu bloquear o huno Átila, o «flagelo de Deus», num seu discurso natalício polemizava contra uma prática dos cristãos romanos manchada de paganismo: «Antes de pôr os pés na basílica do apóstolo Pedro no Natal, detêm-se nos degraus, voltam-se para o Sol nascente, e, baixando a cabeça, inclinam-se para o Sol, para prestar homenagem ao seu disco resplandecente». Na sequência desta observação consegue compreender-se porque é que – quando em Roma, para o solstício de dezembro, se acendiam ao longo da noite fogos que iluminavam a capital, e o povo, à aurora, se inclinava para o Sol nascente – a Igreja colocou a data (cronologicamente ignota) do Natal de Cristo. Também Santo Agostinho advertia os seus fiéis africanos com este apelo: «Deixemos que os pagãos exultem, mas este dia para nós é santificado não pelo Sol visível, mas pelo seu invisível Criador».

 

Intui-se, então, porque é que o anúncio da conceção virginal de Maria, a mãe de Jesus, foi datado nove meses antes do nascimento, ou seja, a 25 de março. É daqui que partimos para procurar um perfil essencial do Natal de Maria. Na verdade, a literatura exegética (deixemos estar a profana e artística, que é infinita) sobre o punhado de versículos, 180 ao todo, dos denominados “Evangelhos da infância” de Cristo nos primeiros dois capítulos dos Evangelhos de Mateus e de Lucas, é imponente. É-o por causa da dificuldade de comprimir no molde frio da classificação dos géneros, a riqueza e a fragrância narrativa e teológica dessas páginas. Elas entretecem as memórias familiares e clânicas ligadas aos três atores dominantes, Maria, o esposo José e o Menino Jesus, com uma efervescência simbólica, polvilhando as páginas de citações e acenos bíblicos, e projetando as várias cenas para o futuro da biografia do recém-nascido, até à sua morte e glorificação final.

 

Deve-se tomar cuidado para não pisar – como foi feito na interpretação da Bíblia tradicional – apenas o pedal da real humildade da autodefinição «serva». Não nos esqueçamos, com efeito, que «servo do Senhor» é um título de honra entregue a Abraão, Moisés, Josué, David e até ao Messias


Mas regressemos ao simbólico 25 de março da anunciação do anjo, o tradicional mensageiro celeste que irrompe na modesta casinha de uma desconhecida jovem de Nazaré, povoação da Galileia, nunca mencionada na Bíblia. Excluamos todo o complexo discurso mariológico e cristológico, e detenhamo-nos brevemente apenas nas duas frases que Maria pronuncia em reação ao anúncio da sua maternidade especial. É de notar a extrema sobriedade da Virgem Mãe nos Evangelhos em relação à incessante loquacidade que ao longo dos séculos lhe colocaram na boca as aparições marianas. Nas únicas fontes originárias evangélicas, deixando à margem os textos apócrifos, Maria pronuncia só 154 palavras; se se excluírem as 102 do canto do “Magnificat” (Lucas 1,46-55), temos uma sequência mínima de declarações.

 

E é isso que acontece na primeira, que é, na realidade, uma pergunta dirigida ao anjo: «Como será isto, dado que não conheço homem?» (Lucas 1,34), sete palavras gregas ao todo. Maria objeta a sua situação atual civil de noiva que excluía a convivência e o “conhecimento” sexual com o seu noivo. Se nesta fase a mulher fosse encontrada grávida por causa de uma relação externa, o futuro esposo tinha o direito de a repudiar, submetendo-a a uma pesada ação penal e social, tendo em conta o contexto cultural e religioso de então. Efetivamente, José teria a intenção de proceder nesse sentido, depois de ter descoberto o estado da sua noiva: é isso que evoca Mateus na paralela “anunciação” a José (1,18-25), assinalando, no entanto, a reviravolta que o anjo imporá também a ele.

 

O imaginário comum da gruta do presépio e da recusa do acolhimento no albergue é postiço: na verdade, Maria não deu à luz num estábulo, mas num quarto secundário que nas casas das povoações servia como despensa e refúgio invernal, em companhia dos animais


Maria revela, portanto, a sua racionalidade, que exige uma explicação perante um anúncio não só surpreendente, mas também indecifrável. Sucede, assim, a ampla articulação da resposta teológica do anjo, que desenvolve uma síntese precisa de cristologia. É só nesse ponto que a mulher oferece a sua aceitação, com a segunda frase, uma réplica de dez palavras gregas (incluindo os artigos): «Eis a serva do Senhor: aconteça em mim segundo a tua palavra (Lucas 1,38). Deve-se tomar cuidado para não pisar – como foi feito na interpretação da Bíblia tradicional – apenas o pedal da real humildade da autodefinição «serva». Não nos esqueçamos, com efeito, que «servo do Senhor» é um título de honra entregue a Abraão, Moisés, Josué, David e até ao Messias. A declaração de Maria é, por isso, também a expressão da autoconsciência de dever levar a cabo uma missão relevante na história da salvação.

 

Devemos agora – para permanecer apenas no perímetro estritamente natalício – chegar ao hipotético e simbólico 25 de dezembro, com o parto em Belém: nas poucas linhas da narrativa de Lucas (2,1-17) aninha-se um cumular de questões histórico-críticas e teológicas. Só um par de exemplos. Antes de tudo, o quebra-cabeças cronológico do recenseamento de Quirino, governador da Síria: o único documento é do ano 6 depois de Cristo, mesmo se é verdade que o evangelista fala de um «primeiro recenseamento». Segundo uma prática, não exclusiva, as operações de censos imperiais podiam ser não residenciais, mas “étnicas”, isto é, na sede de origem das tribos ou dos clãs familiares. É por isso que o casal se desloca de Nazaré a Belém, lugar de ascendência do clã de José. O outro dado é o do parto de Maria no interior de um espaço estranho: «Deu à luz o seu filho primogénito, envolveu-o em faixas e depô-lo numa manjedoura, porque para eles não havia lugar no alojamento» (2,7).

 

«Ela carregou-o nove meses e dar-lhe-á o seio, e o seu leite tornar-se-á o sangue de Deus… Ela sente ao mesmo tempo que o Cristo é seu filho, o seu pequeno, e que Ele é Deus. Ela olha-o e pensa: “Este Deus é meu filho. Esta carne divina é a minha carne. Ele é feito de mim, tem os meus olhos, e esta forma da sua boca é a forma da minha. Ele assemelha-se a mim»


O imaginário comum da gruta do presépio e da recusa do acolhimento no albergue é postiço: na verdade, Maria não deu à luz num estábulo, mas num quarto secundário que nas casas das povoações servia como despensa e refúgio invernal, em companhia dos animais, quarto cedido ao casal talvez por um conhecido ou parente de Belém, que, por seu lado, ocupava a divisão principal. Também a companhia do boi e do burro é apócrifa, criada por uma alegoria popular ignota ao texto evangélico, e baseada num passo do profeta Isaías, em que Deus lamentava que «o boi conhece o seu proprietário e o burro a manjedoura do seu dono, mas Israel não conhece, o meu povo não compreende» (1,3). Todavia, há aquela pincelada de ternura da Mãe, que, na pobreza, se desvela para envolver o seu pequenino em faixas e oferecer-lhe um berço tão simples, na palha e no feno da manjedoura.

 

Detemo-nos aqui, mesmo se «o Menino e a sua Mãe» é um módulo narrativo que constela toda a narração do dramático início da vida do recém-nascido segundo o Evangelho de Mateus, depressa obrigado a ser um refugiado, à medida que se alarga a mancha de sangue do massacre dos pequenos betlemitas ordenado por Herodes. A literatura não só espiritual procurou suprir o magro ditado evangélico e reconstruir as emoções humanas e interiores desta mulher destinatária de uma maternidade tão excecional. Ela, com efeito, gerou um filho que marcou num “antes” e num “depois” dele a História não só ocidental, para crentes e não-crentes. E é precisamente a um ateu declarado como Jean-Paul Sartre que tocou recompor com finura, inclusive teológica, os sentimentos não exprimidos, quase elaborando a definição dogmática “Theotókos”, “Mãe de Deus”, do concílio de Éfeso (431).

 

Fê-lo no texto teatral “Barioná ou o filho do trovão”, escrito quando estava detido no campo nazi de prisioneiros de guerra, destinado a ser representado pelos seus companheiros de prisão no Natal de 1940. Eis algumas linhas dessa obra tão surpreendente e intensa: «Cristo é o seu filho, carne da sua carne e fruto das suas entranhas. Ela carregou-o nove meses e dar-lhe-á o seio, e o seu leite tornar-se-á o sangue de Deus… Ela sente ao mesmo tempo que o Cristo é seu filho, o seu pequeno, e que Ele é Deus. Ela olha-o e pensa: “Este Deus é meu filho. Esta carne divina é a minha carne. Ele é feito de mim, tem os meus olhos, e esta forma da sua boca é a forma da minha. Ele assemelha-se a mim. É Deus e assemelha-se a mim!”. Nenhuma mulher teve desta maneira o seu Deus só para ela. Um Deus pequeníssimo que se pode tomar entre os braços e cobrir de beijos, um Deus quentíssimo que sorri e respira, um Deus que s e pode tocar e vive».

 

[Card. Gianfranco Ravasi | In Pontificio Consiglio della Cultura]

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