«Fake news»: Do Génesis à internet

Pastoral da Comunicação 30 julho 2019  •  Tempo de Leitura: 9

O zelo anglómano impôs recentemente a expressão “fake news”. Na realidade, se de folheia um dicionário, o substantivo e o verbo “fake” abrangem os nossos conceitos de «falso, engano, fraude, logro, contrafação, truque» e assim por diante (a única exceção está no americanismo musical “to fake it”, que se refere a uma improvisação a solo no jazz). A falsa notícia, vendida como verdadeira, ao ponto de fazer cunhar o paradoxal sintagma “pós-verdade”, tem na verdade um ancestral ilustre. Trata-se nada menos do que a serpente tentadora na narração prototípica do Génesis bíblico, um réptil certamente não registado na taxonomia zoológica.

 

É, com efeito, um símbolo que originariamente se referia à idolatria dos cananeus, o povo indígena da terra bíblica que praticava os cultos da sexualidade, vista como expressão do divino que se manifesta na fecundidade humana e animal, e na fertilidade agrícola. A serpente é, efetivamente, um sinal fálico; aliás, no antigo Próximo Oriente era um indicador de vida perene, sobretudo com a sua mudança de pele. Era também uma representação do caos: a deusa mesopotâmica negativa Tiamat era representada como uma serpente gigantesca. A Bíblia, no entanto, num texto grego tardio, o Livro da Sabedoria, intui por trás deste animal simbólico o Tentador por excelência, Satanás: «É por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e dela fazem triste experiência aqueles que lhe pertencem» (2,24). No Apocalipse, a terrível «serpente antiga», o dragão, é Satanás, o diabo» (20,2). Ele é definido pelo Génesis (3,1) como «astuto», um adjetivo sapiencial que evoca a capacidade de elaborar um projeto, expresso precisamente no recurso a um hábil envolvimento enganador da mulher e do homem.

 

A falsidade insistida e bem elaborada prolifera e espalha-se (pense-se na atual internet), e regenera-se como verdade pseudo-objetiva, aparentemente sólida e convincente, na realidade destruidora e devastadora


A sedução acontece à sombra de uma árvore ignota à classificação botânica de Lineu, sendo um vegetal “metafísico”, e, portanto, simbólico. É «a árvore do conhecimento do bem e do mal», na prática uma representação metafórica da moral: o «conhecimento» na Bíblia não é só intelectivo, mas também volitivo, afetivo, efetivo, é um ato global da consciência, enquanto «bem e mal» são os dois polos extremos entre os quais se encerra toda a moral. Aquela árvore simbólica é dada por Deus, que a plantou no terreno da história, porque os valores morais precedem-nos e excedem-nos, são transcendentes e objetivos.

 

O homem, ao contrário, violando o preceito divino que propõe e impõe a moral, quer – com a liberdade de que foi dotado por Deus – decidir qual é o bem e o mal, recusando recebê-los como codificados por Deus. Opta, assim, por ser ele próprio árbitro da ética, repelindo toda a definição superior. Nisto é solicitado precisamente pela “fake news” que lhe instila a serpente, a qual insinua odiosamente que Deus proíbe tudo, «toda a árvore do jardim» do Éden (3,1), e não só aquela do «conhecimento do bem e do mal».

 

Mas o engano prossegue com outra indicação maliciosa, que tem uma alma de verdade, mas que é apresentada de maneira hostil: «Deus sabe que (…) se abrirão os vossos olhos, e tornar-vos-eis como Deus, conhecedores do bem e do mal» (3,5). Ora, é verdade que decidir por si próprio aquilo que é bem e mal é um ato divino, e por isso o «pecado original» é um ato de “hybris”, como dirão também os gregos, é o substituir-se a Deus, arrogando-se a sua sabedoria e a sua autoridade, o senhorio divino sobre a moral. Mas aquilo que o Tentador esconde é que esse é um ato de rebelião de consequências catastróficas, porque a humanidade, com a sua opção de desconstruir a ética, cria aquela avalancha de mal, de violência, de injustiça que o capítulo 3 do Génesis descreverá nas frases seguintes.

 

«Frase poderosa e prometedora, porque oferece como prémio a mais bela das ilusões: a de ter sempre razão, independentemente de qualquer desmentido». Esta deriva tem o seu protótipo ideal precisamente na interpretação falsificada do preceito divino da parte da serpente, e estende-se até às inumeráveis pós-verdades


A partir de então, no entanto, a sedução da “fake news” diabólica gerou o seu efeito fascinador: «A mulher viu que a árvore era boa para comer, agradável aos olhos e desejável para adquirir sabedoria; tomou do seu fruto e dele comeu, depois deu-o ao marido, que eslava com ela, e também ele o comeu» (3,6). A falsidade insistida e bem elaborada prolifera e espalha-se (pense-se na atual internet), e regenera-se como verdade pseudo-objetiva, aparentemente sólida e convincente, na realidade destruidora e devastadora. Na prática, na narrativa do Génesis, como dizíamos, temos o arquétipo de uma comunicação doente, que mesmo assim se amplia, revestindo-se com cores da verdade. Por isso, na literatura bíblica sapiencial pode-se discernir um fio condutor sistemático, que repetidamente condena «a boca repleta de engano», sinal distintivo do poderoso e da malvadez.

 

Daquela fonte descende a infinita genealogia das falsidades muitas vezes cristalizada em textos escritos, como agora acontece de forma exponencial nas páginas eletrónicas das redes sociais. Apenas par citar alguns casos emblemáticos religiosos, pensemos na correspondência apócrifa entre S. Paulo e Séneca, capaz de tornar o filósofo latino um filocristão, e até um convertido à nova fé; na realidade, o epistolário foi elaborado no século IV. E que dizer da célebre “Doação de Constantino” [documento que cederia ao papa vastos territórios do Império Romano], um texto que fez enfurecer Dante: «Ai, Constantino, de quanto mal foi mãe,/ não a tua conversão, mas aquele dote/ que de ti tomou o primeiro rico pai!», isto é, o papa Silvestre I? Na realidade, esta ideia de teocracia papal foi uma hábil contrafação excogitada pela Cúria romana na segunda metade do século VIII para avaliar o poder temporal dos pontífices.

 

Cada um poderá alongar esta lista, estendendo-a para o âmbito político, por exemplo com os infames “Protocolos dos sábios” de Sião, ou com a invenção das armas de destruição em massa de Saddam Hussein, excogitada por George Bush para justificar a primeira guerra do Golfo. A matriz teórica da falsificação comunicativa pode ser identificada numa tese reiterada nos últimos tempos: não há factos, mas apenas interpretações.

 

O filósofo Maurizio Ferraris partia precisamente da asserção acima enunciada e comentava: «Frase poderosa e prometedora, porque oferece como prémio a mais bela das ilusões: a de ter sempre razão, independentemente de qualquer desmentido». Esta deriva tem o seu protótipo ideal precisamente na interpretação falsificada do preceito divino da parte da serpente, e estende-se até às inumeráveis pós-verdades que até os políticos mais poderosos não hesitam em recorrer como instrumento de governo. Mas no fim de tudo vale uma interrogação que o mesmo Ferraris lança ao leitor: «Que coisa poderia ser um mundo, ou até simplesmente uma democracia, em que se aceitasse a regra de que não há factos, apenas interpretações?». Sobretudo se elas são fruto de uma manobra enganadora ramificada ao longo das artérias virtuais da rede informática?

 
[Card. Gianfranco Ravasi | Fonte: Il Sole 24 Ore]

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