O verdadeiro cristão sabe comunicar a alegria

Razões para Acreditar 21 julho 2021  •  Tempo de Leitura: 12

No nosso horizonte há hoje dois fenómenos que a evangelização tem de ter em conta: o indiferentismo da maior parte das pessoas das nossas sociedades pós-cristãs e o pluralismo religioso, devido sobretudo às migrações de crentes de outras religiões no nosso continente. Ambas colocam em crise não só as formas e os modos, mas a própria plausibilidade da evangelização: são fenómenos dolorosos para a consciência crente porque não a contestam frontalmente, não a combatem abertamente, mas afirmam, como a sua própria existência, que o cristianismo pode ser insignificante e que se pode viver bem sem ele. A indiferença religiosa coloca a Igreja diante do espetro da sua possível insignificância e inutilidade, enquanto o pluralismo religioso faz entrever ao cristianismo a possibilidade de ter de se considerar como uma proposta entre as outras, sem títulos de superioridade nem, muito menos, de absolutismo.

 

O problema sério é se não são os próprios cristãos e as Igrejas que produzem ateus com as suas atitudes desumanas e intolerantes, com a prática da autossuficiência e da não escuta


A indiferença é percecionada como um hóspede inesperado, um intruso indesejado, uma presença embaraçante diante da qual se é tentado ou a eliminá-la com a nostalgia de um mundo povoado de militantes, ou de a condenar com juízos sumários e definitivos: assim a indiferença seria o resultado de um individualismo exasperado, de uma cultura incapaz de discernimento e marcada por uma radical incerteza… A indiferença de quem está desiludido pelo fim das ideologias, a indiferença de ex-crentes frustrados na sua expetativa de uma renovação eclesial, a indiferença do ser humano tecnológico, convencido de que pode dominar tudo através da técnica, aparece aos cristãos como enigmática e grande inimiga. Todavia, estimula-o a colocar-se perguntas saudáveis: porque é que o cristianismo deixou de ser interessante aos olhos de muitos? E os cristãos, estão eles próprios verdadeiramente “evangelizados”, ao ponto de poderem ser “evangelizadores” eficazes? Não esqueçamos que a indiferença cresce na medida em que desaparece a diferença. De resto, o cristianismo é uma oferta, não uma imposição, e não pretende ter o monopólio da felicidade, mas afirma que a encontra na vida segundo Jesus Cristo. O facto de haver ateus só reforça a opção de liberdade que está na base de uma vida cristã. O problema sério é se não são os próprios cristãos e as Igrejas que produzem ateus com as suas atitudes desumanas e intolerantes, com a prática da autossuficiência e da não escuta.

 

Diante do outro pela língua, etnia, religião, cultura, hábitos alimentares e médicos, antes de evangelizar é preciso aprender o alfabeto com o qual podemos falar com ele


Quanto ao pluralismo religioso, é preciso que não sejamos abstratos: nunca se encontra o islão ou uma religião, mas homens e mulheres que pertencem a determinadas tradições religiosas e para os quais esta pertença é um aspeto de uma identidade múltipla e não monolítica. Neste “caminhar ao lado”, neste viver uns ao lado dos outros, os cristãos não devem entrar por caminhos apologéticos nem assumir atitudes defensivas ou, pior ainda, agressivas, mas devem saber criar espaços de vida e de acolhimento com vista à edificação de uma “polis” não simplesmente multicultural e multirreligiosa, mas intercultural e inter-religiosa. Mais que nunca, os cristãos são chamados a criar espaços comunitários a partir da sua capacidade de ser homens e mulheres de comunhão e a tornar as sias Igrejas autênticas “casas e escolas de comunhão” para todos os seres humanos. O caminho de evangelização requer conhecimento do outro e da sua fé, capacidade “pentecostal” de falar a língua do outro, de fazer-se próximo no sentido evangélico de quem se fez próximo de nós fisicamente, mostrando assim que se acredita no único Pai e se reconhece a fraternidade universal. Diante do outro pela língua, etnia, religião, cultura, hábitos alimentares e médicos, antes de evangelizar é preciso aprender o alfabeto com o qual podemos falar com ele, manifestando concretamente uma proximidade e simpatias “cordiais”: só desta maneira se poderá «construir uma casa comum pra a humanidade na qual Deus possa viver».

 

Hoje, ao cristão, é pedido de não negligenciar a sua tarefa de anunciar o Evangelho, mas este anúncio não pode estar desligado de uma boa comunicação, um comportamento límpido, uma prática cordial da escuta, da discussão e da alteridade. Sim, o anúncio cristão não deve acontecer a todo o custo, nem através de formas arrogantes nem com uma ostentação de certezas que mortificam, ou com esplendores de verdade que cegam. Com efeito, como recordava já Inácio de Antioquia no início do século II, «o cristianismo é obre de grandeza, não de persuasão».

 

São precisos homens e mulheres que narrem com a sua própria existência que a vida cristã é “boa”: que sinal será maior de uma vida habitada pela caridade, pelo fazer o bem, pelo amor gratuito que chega até a abraçar o inimigo, por uma vida de serviço entre os seres humanos, sobretudo os mais pobres, os últimos, as vítimas da história?


Paulo VI pediu várias vezes á Igreja, em vista da evangelização, de «fazer-se diálogo, conversa, de olhar com imensa simpatia para o mundo, porque, ainda que o mundo pareça estranho ao cristianismo, a Igreja não pode sentir-se estranha ao mundo, qualquer que seja a atitude do mundo para com a Igreja». É por isso que é preciso antes que tudo que os cristãos sejam eles próprios “evangelizados”, discípulos no seguimento do Senhor, mais que militantes improvisados: assim saberão mostrar a “diferença” cristã. Os cristãos não procurem visibilidade a todo o custo, não recorram à sobre-exposição para evangelizar, não se sirvam de instrumentos fortes de poder, mas, guardando com o máximo cuidado a Palavra cristã, saibam sobretudo ser testemunhas daquele Jesus que narrou Deus aos seres humanos com a sua vida humana.

 

O primeiro meio de evangelização permanece o testemunho diário de uma vida autenticamente cristã, uma vida fiel ao Senhor, uma vida marcada pela liberdade, gratuidade, justiça, partilha, paz, uma vida justificada pelas razões da esperança. Esta vida marcada pela de Jesus poderá suscitar interrogações, fazer nascer perguntas, de maneira que ao cristão será pedido que «dê conta da esperança que o habita» e da fonte do seu comportamento. Para isso são precisos homens e mulheres que narrem com a sua própria existência que a vida cristã é “boa”: que sinal será maior de uma vida habitada pela caridade, pelo fazer o bem, pelo amor gratuito que chega até a abraçar o inimigo, por uma vida de serviço entre os seres humanos, sobretudo os mais pobres, os últimos, as vítimas da história? Teófilo de Antioquia, um bispo do século II, aos pagãos que lhe pediam «mostra-me o teu Deus», invertia a pergunta: «Mostra-me o teu homem e eu te mostrarei o teu Deus», mostra-me a tua humanidade, e nós, cristãos, através da nossa humanidade, vos diremos quem é o nosso Deus. Os cristãos do século XXI podem dizer isto? Sabem mostrar uma fé que plasma a sua vida à imitação da de Jesus, ao ponto de fazerem mostrar neles a diferença cristã? A sua vida propõe uma forma de ser humano, uma maneira humana de viver que narre Deus, através de Jesus Cristo?

 

Os grandes mestres da espiritualidade cristã repetiram sempre: «O cristianismo é “filocalia”; amor da beleza, “via pulchritudinis”, via da beleza, ou não é!»


De outra forma, como poderão ser credíveis no anúncio de uma “boa notícia”, se a sua vida não consegue manifestar a “beleza” do viver? Na luta de Jesus contra aquilo que é inumano, na luta do amor, houve espaço também para uma existência humanamente bela, enriquecida pela alegria da amizade, rodeada pela harmonia da Criação e iluminada por um olhar de amor sobre todas as realidades mais concretas de uma existência humana. Porque também as alegrias e fadigas que o cristão encontra diariamente se tornam acontecimentos de beleza, é preciso uma vida capaz de colher sinfonicamente o própria existência juntamente com a dos outros e de toda a Criação.

 

Assim, a vida do cristão que quer anunciar Jesus como «homem segundo Deus» será também, à imitação da do seu Senhor, uma vida feliz, bem-aventurada. Certo, não em sentido mundano e banal, mas feliz no sentido verdadeiro, profundo, porque a felicidade é a resposta à busca de sentido.

 

Tal deveria ser a vida cristã: libertada dos ídolos alienantes como das compreensões desviantes da religião, marcada pela esperança e pela beleza. Os grandes mestres da espiritualidade cristã repetiram sempre: «O cristianismo é “filocalia”; amor da beleza, “via pulchritudinis”, via da beleza, ou não é!». E se é via da beleza, saberá atrair também outros àquele caminho que conduz á vida mais forte que a morte, saberá ser narração viva do Evangelho para os homens e mulheres deste nosso tempo.

 

[Enzo Bianchi | In Altrimenti]

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail