«Todos irmãos»: Entre urgência e desejo, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 7 novembro 2020  •  Tempo de Leitura: 6

Uma narrativa bíblica crucial para a construção de uma teologia da fraternidade é a que nos é narrada no capítulo 37 do livro do Génesis. Jacob envia o seu filho José para os campos, para saber como estão os irmãos, ocupados a pastorear o rebanho. E um elemento interessante, entre tantos outros deste famoso passo, é que José não encontra de imediato os irmãos. Com efeito, a fraternidade não é um mero automatismo do sangue ou da geografia da família em que se nasce. Da história de Caim e Abel (Génesis 4,1-16), a Bíblia faz-nos saber que a fraternidade é, antes de tudo, uma opção ética na qual nos devemos comprometer, uma decisão existencial e espiritual que, de maneira muito concreta, ou aceitamos ou recusamos. Enquanto José erra pelos campos, um homem vê-o e pergunta-lhe: «Que procuras?». Ele dá uma resposta que, no fundo, serve também para explicar as nossas buscas e as do mundo atual. José responde: «Procuro os meus irmãos». É precisamente desta busca que fala a encíclica “Fratelli tutti”.

 

A urgência da fraternidade

Em primeiro lugar, “Todos irmãos” é um texto marcado pela urgência. A urgência pode ser colhida, por exemplo, logo no primeiro capítulo, intitulado “As sombras dum mundo fechado”. O papa Francisco ajuda-nos a olhar o mundo à nossa volta, propondo um diagnóstico essencial do momento histórico que estamos a viver. E não é um momento fácil. Vem-me à ideia o título de uma obra teatral do escritor Peter Handke, prémio Nobel da Literatura 2019: “A> hora em que não sabíamos nada um do outro”.

 

Contra este estado das coisas, o papa eleva a sua voz de maneira profética: «A história dá sinais de regressão» (n. 11). De facto, não só assistimos ao reacender-se de uma conflitualidade que pensávamos superada, quer no plano internacional quer no interior das comunidades nacionais, como vemos também espalhar-se «uma perda do sentido da história» (n. 13) que abre novamente o caminho a lógicas de desagregação, descarte e domínio.

 

O primeiro a ser ignorado é o bem comum, visto que na experiência da globalização atual aquilo que se constata é o triunfo das ambições dos mais fortes e a crescente precariedade das regiões e dos grupos humanos vulneráveis. Como nos é recordado, «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos» (n. 12). Ao contrário, «encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência» (idem).

 

Basta ver como os direitos humanos ainda não são suficientemente universais; como continuamos a habitar a casa comum como consumistas desenfreados, em vez de nos empenharmos a gerir equilíbrios no ecossistema; como não nos preocupamos suficientemente a definir eticamente o progresso tecnológico, fazendo dele um instrumento ao serviço da pessoa humana, em vez de uma forma de manipulação e de assimetria social; ou como, perante o flagelo da pandemia que está a atingir o mundo, recusamo-nos a reconhecer que estamos todos na mesma barca e que ninguém se salva sozinho.

 

Qual é o resultado desta cegueira? O papa Francisco di-lo claramente: «No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos» (n. 30). Em síntese: falta um projeto comunitário capaz de nos unir a todos.

 

A fraternidade: um projeto para todos

O que o papa Francisco propõe é que este projeto possa ser a fraternidade e a amizade social. É fá-lo de modo muito explícito: «Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras» (n. 6).

 

De facto, da tríade liberdade, igualdade e fraternidade, que representa o ideal da modernidade, as nossas sociedades incluíram as primeiras duas, mas deixaram de fora a fraternidade, como se fosse uma questão estritamente privada, sobre a qual não é possível construir um consenso social.

 

No entanto, como afirma o papa Francisco, sem a fraternidade, a liberdade e a igualdade correm o risco de se tornarem tragicamente inconclusivas e abstratas, facto que podemos facilmente apurar. O reconhecimento da fraternidade é, portanto, uma das tarefas atuais mais prementes, que deve envolver todos os atores, da política à economia, da cultura às religiões.

 

Ao comentar a parábola evangélica do bom samaritano, o papa diz: «Cada dia é-nos oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova. Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas» (n. 77). As palavras-chave são começar e recomeçar. A fraternidade é colocada nas nossas mãos como um desafio inderrogável.

 

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