Agir e ser

Razões para Acreditar 26 junho 2020  •  Tempo de Leitura: 9

No Evangelho segundo S. Mateus, em 6, 1-5, encontramos três vezes o termo «misthon» («μισθόν»), de «misthos» (μισθός»), a que habitualmente se atribui o valor semântico de «recompensa». Cristo reflete e ensina sobre o modo próprio de agir para os seus seguidores. Os modos particulares escolhidos são paradigmáticos, mas o que interessa não é esta paradigmaticidade segunda, antes, a paradigmaticidade primeira da ação humana a que, primeira e fundamentalmente, se refere o texto.

 

A relação fundamental é entre o que se age, o que cada um põe em ato, próprio seu, a outros entes irredutível etiologicamente, e a dita «recompensa». Há dois paradigmas de agir: um é o dar, o outro é o orar. Referência ao agir para o mundo e referência ao agir para Deus. Ambos são fruto ontológico de quem os pratica, os faz, como se costuma dizer, e bem.

 

Bem, porque, no primeiro caso, se aplica o termo «poies» («ποιᾗς»), próprio do agir fazendo, da poiética, agir com transição para lá da pura interioridade do agente. No segundo caso, «proseykhesthe» («προσεύχησθε»), é o agir orante que está em causa, em que qualquer poeticidade a haver não transita para o outro da relação – Deus – a quem nada falta, antes permanece no seio ético do orante, assim, se confundindo nele o agir com o bem do produto de tal agir.

 

Repare-se que não há neste passo da Escritura qualquer referência literal a uma «recompensa». Quer num caso quer no outro, há um produto objetivo do agir humano, que se confunde com o próprio agente humano como resultado: a grandeza ontológica do que cada ser humano «faz» coincide com o tal «misthos». Não há qualquer distância ontológica entre o que se faz e o que se é no que se faz.

Não há como separar o agente dos atos, o fazedor do feito como produto seu: «não fui eu»; todavia, foste tu. És tu. És tu para todo o sempre. Não há magia que possa apagar o absoluto do que foi «feito»

Não há um salário – que é o sentido genérico básico de «misthos» e dos muitos termos que dele retiram o seu sentido derivado – propriamente dito, que é sempre diferente do que é esse quem recebe tal salário. Como é evidente, eu não sou o meu salário, seja este o que for.

 

Então, não é de algo como um «salário» ou uma «recompensa» que Cristo fala, pois não se trata de algo de distinto segundo o ser do que é o ser de quem está em causa, no seu agir.

 

No seu agir: melhor, no «agir que é». Trata-se, assim, de pensar o que é o ser próprio de cada ente humano como fruto de seu próprio «agir», de seu próprio «fazer». Neste sentido, somos o que agimos.

 

Para lá da paixão total que é o dom de ser que fez do nosso «nada relativo» o nosso tudo mundano, para lá das outras paixões que vamos sofrendo – e nada disto é propriamente nosso, pois não é fruto do que somos como «agir» ou «fazer» –, somos o que «fazemos», o que «agimos». Não somos coisa alguma mais.

 

Sendo assim, o que Cristo diz é ontologicamente terrível: sois o que são os vossos atos; é essa a vossa «recompensa», a vossa «recompensa» sois vós como fruto de vossos atos.

 

Não há como separar o agente dos atos, o fazedor do feito como produto seu: «não fui eu»; todavia, foste tu. És tu. És tu para todo o sempre. Não há magia que possa apagar o absoluto do que foi «feito». É este o sentido racional do que era entendido como «destino».

Cada bem que se «faz», cada bem que não se «faz»; cada mal que se «faz», contraditório do bem que se poderia ontologicamente «fazer» – ontologicamente, não há desculpas psicológicas, sociológicas ou outras – ou ter «feito», cola-se ontologicamente ao que se é, nunca se descolando, nunca se podendo descolar

Tudo isto parece muito abstrato; tudo isto parece apenas complicar as simples palavras de Cristo, boas para os simples. Certamente, mas «simples» e «estúpido» não são o mesmo. As palavras são simples, mas o sentido, embora simples, não é evidente, ou não se chamaria «recompensa» a algo que não pode ser destacado ontologicamente do autor.

 

Concretize-se, então. O que Teresa de Calcutá «fez» é o dito «salário» de Teresa de Calcutá. Não é o meu ou o de outro qualquer. Só que este «salário» é o próprio ser de Teresa de Calcutá. E será tal para todo o sempre. Como «recompensa» não é mau de todo. Pense-se no que tal significa para todas as análogas «Teresas».

 

Todavia, não é sem «salário» o que Hitler (e os seus análogos) fez. Tal segundo o mesmo paradigma de Teresa de Calcutá, todavia, com obras manifestamente diversas a constituir tal «salário». Para todo o sempre. Sem ilusão.


Cada bem que se «faz», cada bem que não se «faz»; cada mal que se «faz», contraditório do bem que se poderia ontologicamente «fazer» – ontologicamente, não há desculpas psicológicas, sociológicas ou outras – ou ter «feito», cola-se ontologicamente ao que se é, nunca se descolando, nunca se podendo descolar. É esta a dita «recompensa», e não há outra. Não ontologicamente.

Supõe-se que ser como Teresa de Calcutá dê muito trabalho. Todavia, para quem consegue intuir a grandeza em causa, tal é muito belo. É este o pão nosso de cada dia, não o que Deus dá, mas o que nós amassamos: a nossa «recompensa»

E o perdão? Perdoa, mas não pode apagar magicamente o absoluto ontológico do que foi feito. Perdoado, um Hitler arrependido – algo de teoricamente possível – viverá eternamente na presença de Deus, mas como Hitler, não como Teresa de Calcutá, por exemplo. Hitler será sempre o que Hitler fez. Por pensamentos, palavras, atos e omissões.

 

Não admira, assim, que Cristo ponha nesta mensagem o empenho que põe: é a grandeza ontológica definitiva de cada um que está em jogo.

 

Cristo pergunta assim a cada um de nós: como queres ser para sempre, como Teresa de Calcutá ou como Hitler. O que fizeres assim o destinará.

 

Cristo ama-nos sempre, mas isto que eu sou para Cristo amar, isso não é Cristo quem o «faz», sou eu.

 

A escatologia e a soteriologia não são realidades futuras ou simplesmente metafísicas, mas «cairóticas» em mundana permanência: é aqui e agora que está sempre o meu possível fim ontológico; aqui e agora que me salvo ou não.

 

Supõe-se que ser como Teresa de Calcutá dê muito trabalho. Todavia, para quem consegue intuir a grandeza em causa, tal é muito belo.

 

É este o pão nosso de cada dia, não o que Deus dá, mas o que nós amassamos: a nossa «recompensa». «Fui eu».

 

[Américo Pereira]

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