«Comungar: na mão ou na boca?», por P. Vasco Pinto de Magalhães, sj

Razões para Acreditar 8 junho 2020  •  Tempo de Leitura: 16

Para quem, estando de fora, nos ouvisse, a questão poderia parecer bastante estranha. Comungar é estar em comunhão e alimentar essa comunhão. E, para os cristãos católicos, praticantes, que participam na celebração da Missa e nela comungam do pão consagrado, a questão de fundo é: estou ou não estou em comunhão com Cristo e o seu Corpo que é a Igreja? E não existe uma coisa sem outra. O resto é formal, depende dos tempos e dos modos, variou e pode variar. Recebo a hóstia na boca ou na mão?

 

E isso é importante?

 

Até ao século IX não consta que alguém se pusesse tal questão: quanto ao modo concreto de participar na mesa ou no altar de Cristo. Era o modo natural da Ceia de Jesus, de repartir o pão e o distribuir. Vale a pena ir à História da Igreja e desses séculos, à volta do ano mil, e espreitar as suas de convulsões, tensões e divisões e perceber porquê. Mas houve tantas outras épocas de tensão e adaptação! E, contudo, no horizonte, é preciso manter as palavras de Jesus à Samaritana: virão tempos em que nem neste monte nem naquele adorareis a Deus, mas sim, em Espírito e Verdade. Não será esta a atitude a procurar?

 

No século IV, quando a Igreja deixava de ser perseguida, nas suas Catequeses mistagógicas (“mistagógico” quer dizer que a Catequese não ensina apenas a doutrina como, também, inicia à sua prática espiritual), S. Cirilo, bispo de Jerusalém, escrevia, em 348, a esse propósito:

 

“Quando te aproximares (do altar) não vás com as palmas das mãos estendidas, nem com os dedos separados, mas faz com a mão esquerda um trono para a tua mão direita, uma vez que ela vai receber o Rei; e recebe o corpo de Cristo na cova da mão, dizendo: Ámen. Depois santifica os teus olhos ao sentir o contacto do corpo santo, recebe-o com segurança, com o cuidado de não perder nada dele. Pois, se te caísse alguma coisa seria como se tivesses perdido um dos teus membros. E diz-me: se alguém te tivesse dado umas aparas de ouro, não as guardarias com todo o cuidado, decidido a nada perder e a ter que sofrer essa pena? E não haverá que pôr muito mais empenho em que não te caia nem uma migalha, mais valiosa que o ouro e as pedras preciosas?” (nº 21; e depois, no nº 22, recomenda como participar do cálice.)

 

Muitas outras grandes figuras dos primeiros séculos, santos padres e teólogos escreveram nesta mesma linha: Teodoro de Mopsuestia, João Crisóstomo, Ambrósio de Milão, etc.

 

A comunhão, pois, não é um prémio para os bons, mas o alimento dos pecadores que, assim transformados, recebem a missão de ir por todo o mundo como corpo de Cristo.

 

Que estranho é pensar que estando à mesa com Cristo, celebrando a “fração do pão”, (primeiro nome dado ao memorial da Ceia de Jesus), partilhando o pão consagrado, não o possas fazer com todo o respeito, comendo desse dom que Cristo, pelas mãos do sacerdote, condivide contigo. É claro, começamos por dizer: Senhor eu não sou digno…. Claro que não somos. Mas é Jesus, sendo Ele esse pão, que nos dignifica comunicando-se. Mais, é Ele que se levanta da mesa e se ajoelha diante de cada um de nós para nos servir, nos alimentar com o seu gesto. A sua palavra e os seus gestos devem ser o nosso pão, o nosso alimento no caminho da humildade e do serviço.

 

Esse modo de estar é o seu corpo: dele precisamos de nos alimentar. Disse: eu sou o vosso pão, quem se alimentar – desta maneira de ser – viverá. E também o disse com outra linguagem: lavando-nos os pés! Que era trabalho de escravo, e tanto chocou Pedro. Mas o Senhor disse-lhe: “compreenderás mais tarde”, e acrescentou para todos: “fazei isto em memória de mim!”. Ou seja: façam como eu vos fiz; façam-se pão uns para os outros; lavem os pés uns aos outros! Este é o grande sinal; esta é a comunhão do seu corpo! Deverá ser o modo de estar da Igreja.

 

A comunhão, pois, não é um prémio para os bons, mas o alimento dos pecadores que, assim transformados, recebem a missão de ir por todo o mundo como corpo de Cristo. Aliás, “ir à missa”, o nome mais tardio que a Igreja deu à ceia de Cristo, significa ir buscar (e receber) a missão e o alimento para a missão. Essa fortaleza, esse pão recebido (comungado) no primeiro dia da semana, juntamente com a palavra de vida, é para ser posto em prática durante a semana. De pé, recebo esse pão, para que, tornando-me pão com Cristo, me faça pão para os outros. E assim, no dia-a-dia, cada um se torne Jesus presente: “fazendo tudo em sua memória”. Ou seja, atualizando a presença de Cristo, através dos gestos e das palavras.

 

A História da Igreja está cheia de balanços e crises, por vezes chegando a roturas e exageros de uma parte ou de outra. Por exemplo, exaltar de tal maneira o sentido do sagrado, já não como amor, mas como o intocável e separado: “Comungar na mão” impura, nem pensar! Na boca sim, mas “nem com os dentes se podia tocar”, ficando em jejum desde o dia anterior. Criaram-se escrúpulos e angústias. Mais, era necessário estar em “tal” estado de graça que para comungar seria preciso, quase, ter acabado de se confessar. E se, entretanto, vinha um “mau” pensamento?! Chegou-se ao comungar apenas e quase só pela Páscoa, apresentando um documento em como se tinha confessado: era a chamada “desobriga”. Com esta prática, onde vai parar a imagem desse Senhor Jesus que encarna na lama de Israel, que “se esvazia a si mesmo” por amor de nós (como diz S. Paulo), que se dá e se deixa tocar pelos pobres e pecadores? Também é certo que, por outro lado, tudo isso fez surgir na Igreja, em saudável contra-corrente, os grandes apóstolos e santos promotores da comunhão frequente e da missa diária. Ou não será esse o pão sobressubstancial (como diz S: Mateus), “o pão nosso de cada dia” (como costumamos dizer) que o Pai dá àqueles que lho pedem?

 

É importante compreender as circunstâncias históricas de todas estas “práticas e costumes”, ritos, que a Igreja, seguindo o Espírito, sempre vai revendo e reformando pelo mandato que tem de se atualizar e corrigir evangelicamente. O pior de tudo são as absolutizações e radicalizações de ritos e formas particulares que podem fixar-se e já não deixar ver o que seja “adorar e viver em espírito e verdade”.

 

A verdade é que comungar é sinal de estar em comunhão com a Igreja e é participar ativamente na celebração eucarística que faz crescer e dinamizar essa pertença, essa comunhão. Porém, acontece que há quem, certamente porque não percebeu, ou ignora, ou se fanatizou piedosamente, venha exigir “como direito” (e não como graça) comungar o “corpo de Cristo”, isolado da celebração do sacramento da Eucaristia e até, por vezes, estando objetivamente contra as orientações da Igreja: ou seja, não estando em comunhão. Ora, lembremos a antiga doutrina a propósito do Sacramento da Reconciliação: não estando nem querendo estar, consciente e livremente, em comunhão com a Igreja, nem sequer se pode receber a absolvição. Acontece! E a tal ponto poderá chegar um tradicionalismo (ou progressismo) irrefletido, que absolutize outras orientações ou rejeite as que a Igreja propõe.

 

A História da Igreja está cheia de balanços e crises, por vezes chegando a roturas e exageros de uma parte ou de outra.

 

A fé cristã é mais do que uma religião; é mais do que uma doutrina e um conjunto de regras canónicas (que têm o seu lugar). O essencial, que distingue o Cristianismo, é ser uma relação pessoal e comunitária com o Senhor Jesus Ressuscitado, presente e atuante na Igreja que, embora pecadora, é santa: é o seu corpo místico. E é esse que comungamos.

 

Comunhão na boca ou na mão? Infelizmente, tornou-se recorrente o debate como se houvesse um certo e um errado, esquecendo a fundamentação teológica e espiritual e o seu sentido eclesial na construção do reino. Quase logo se invoca a Liturgia como se esta fosse um guião rígido de um teatro mágico sem espontaneidade nem adaptação. “Liturgia”, aliás, é uma palavra grega que significa o “agir (sagrado) do povo”. Certamente há, e deve haver, boas diferenças na celebração, se é para crianças, se é num lar de idosos, num acampamento ou numa catedral…

 

Não esquecendo o que ficou dito acima, é fácil de ver que pode haver lugar para dar a comunhão na boca. Por exemplo, a um acamado, a alguém que não pode mexer os braços, um tetraplégico, etc. Já dei a comunhão com uma colher e com a hóstia diluída em água a quem apenas podia acenar e abrir um pouco a boca. E foi muito litúrgico! Mas, imaginemos um jantar em que o presidente se levanta e vai ele, ou manda alguém dar de comer na boca aos convidados! Como reagiriam, eles? Até seria inestético. A liturgia pede beleza, respeito e maturidade das pessoas e dos movimentos. Por aí também passa a mensagem.

 

Bem, dirão os opositores, mas “na boca” mostra mais humildade e é mais seguro. Será? Quanto à humildade, a maior é a de Cristo que se faz pão; depois vem a nossa: como pedintes, sem méritos, cada um estende a mão agradecido por tanto bem dado de graça. Quanto à segurança: a minha experiência de muitos anos de padre é a de que é muito raro que caia uma hóstia dada na mão a um adulto. Mas, se dou na boca é mais difícil evitá-lo: há pessoas que tremem, abanam a cabeça, umas quase mordem os dedos do padre, outras como que fogem e sem mostrar a língua tornam a operação bastante difícil. Estará a boca menos suja do que a mão? Também há quem o faça bem! E a propósito da ideia da segurança, não há muito tempo, estava a distribuir a comunhão, veio uma senhora, devotamente, a comungar na boca. Por alguma razão, fixei-a e acompanhei-a com o olhar na sua ida para o lugar. Seguiu para o corredor lateral, deu alguns passos e, tirando a hóstia da boca meteu-a na carteira e um pouco mais acelerada saiu da Igreja. Porquê? Para quê? Pensei: posso gritar, mandar alguém chamá-la… Mas o escândalo, a interrupção da celebração seria ainda um mal maior. Ficou-me a lição de que nada é absolutamente seguro!

 

Perante uma situação grave como a desta pandemia, o bom senso, o cuidado com os outros e consigo próprio, tal como Jesus teria feito, a orientação dos nossos Bispos, responsabilizando-nos, é a comunhão na mão.

 

Perante uma situação grave como a desta pandemia, o bom senso, o cuidado com os outros e consigo próprio, tal como Jesus teria feito, a orientação dos nossos Bispos, responsabilizando-nos, é a comunhão na mão. Os outros, as vidas, são a realidade mais sagrada que não pode ser posta em causa em nome de uma regra relativa, mesmo em nome de um suposto direito que, entendido sem discernimento, não é coragem, nem fidelidade. Essas práticas, por mais piedosas, “seguras e rigorosas perante a lei”, precisam de ser refletidas à luz do Evangelho para não se tornarem em simples dependências emocionais. Podem tornar-se prepotências e contra-testemunho do Evangelho. Lembro-me que, pelo menos duas vezes, estando na Missa no meio do povo fui comungar e o Padre negou-se a dar-me a comunhão na mão. Numa das vezes, pareceu-me um claro abuso de poder: que razões sérias, teológicas, canónicas e pastorais teria para o fazer?

 

Nestes tempos, ameaçados por um vírus mortífero, querer (e até exigir) a comunhão na boca é uma falta de sentido de Igreja; pode ser uma irresponsabilidade para com o bem comum. A espiritualidade pede que sacrifiquemos os nossos hábitos e “direitos” pelo bem maior: o cuidado pelos mais frágeis. E comungar Jesus, não é sair de si e ir ao encontro dos mais necessitados?

 

O padre Teilhard de Chardin disse uma vez que, mais do que comungar ao morrer, preferia morrer comungando. E morreu num domingo de Páscoa. Quando morremos ao nosso ego, comungamos.

 

[P. Vasco Pinto de Magalhães, sj]

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