E agora, de onde nos virá a salvação?

Razões para Acreditar 26 maio 2020  •  Tempo de Leitura: 12

E agora, de onde nos virá a salvação? Desde há largas semanas, todos esperamos que alguém diga uma das palavras mágicas: vacina, tratamento, cura. E, mesmo iniciando o regresso a um quotidiano possível, sentimo-nos ainda tolhidos pelo medo, por muitos medos, mesmo que não ousemos confessá-lo. Medo de morrer, sim, mas também medo do sofrimento que a nova doença provoca em histórias que ouvimos contar. De onde nos virá, afinal, a salvação?

 

Alguns não controlam o medo e isso leva ao disparate, a um «discurso muito velho, muito mais do que 2000 anos», como dizia o patriarca de Lisboa em entrevista à Ecclesia (1). Ou de «ignorância, fanatismo sectário ou loucura», para usar as expressões do bispo de Leiria-Fátima, cardeal António Marto (2).

 

É o caso mais triste de pessoas investidas em funções clericais ou de ensino no interior da comunidade cristã. Para essas pessoas (há vários casos vindos a público em Portugal e no estrangeiro, nestas semanas), Deus é um feiticeiro, um mágico, que está a castigar a humanidade (e a Igreja ou o Papa) por aquilo que faz (fez) de mal. Há perspectivas animistas mais purificadas e mais crentes no Deus de amor dos cristãos (e dos judeus e muçulmanos) do que estas...

 

Sim, há uma desculpa, mesmo para tanto despropósito: de repente, vimo-nos todos, sete mil milhões de humanos, diante de algo que julgávamos arrumado na história ou assumindo-se apenas como ficção longínqua. Vimo-nos todos, surpreendidos, no meio de uma «tempestade inesperada e furibunda, (...) frágeis e desorientados», desmascarados na nossa «vulnerabilidade» e com as nossas «falsas e supérfluas seguranças» a descoberto, como disse o Papa, na intensa e comovente Oração pela Humanidade, de 27 de Março. (3)

 

Num instante, fomos obrigados a tomar decisões, adaptar métodos de trabalho, recriar quotidianos, reorganizar espaços. Também de repente, milhares de aviões ficaram pousados no chão, indústrias foram obrigadas a parar, serviços ficaram em suspenso. E o ar ficou mais limpo, os animais e as aves voltaram a vir ter connosco, a cantar perto de nós. Mas a emergência climática, uma das outras pandemias que já matam (muita) gente não acaba por causa de um vírus, avisou(-nos) Guterres... (4)

 

Vimo-nos forçados a fazer tudo isso e a tentar resolver problemas para os que ficaram desempregados ou com o emprego suspenso em lay-off, a ter de trabalhar e dar assistência aos mais novos que, por sua vez, passavam a ver o professor e o educador através de um ecrã... E, ao mesmo tempo, tentando equacionar já o dia seguinte, percebendo o que a ciência e a medicina começavam a dar por seguro ou estudando as milhentas dúvidas que ainda sobram.

 

O “Titanic” e as tábuas

 

De repente, vimo-nos a reaprender vocábulos esquecidos: contágio, quarentena, abandono, peste, pânico social, isolamento, hospital de campanha, sofrimento, morte, medo. (5) Mas também reaprendemos, aperfeiçoámos, reinventámos a solidariedade, os gestos de proximidade, o risco assumido em nome da ajuda a quem precisava, tal como já tinha igualmente sucedido noutras épocas da história. (6)

 

Estamos todos no mesmo barco e ninguém se salva sozinho, disse ainda o Papa naquele fim-de-tarde de 27 de Março. Poderíamos levar a metáfora mais longe: estamos todos no meio de uma mesma tempestade, mas há quem insista em querer o “Titanic” só para si, mandando todos os outros – ciganos, refugiados, pobres, idosos – para a des-ventura de tentar salvar-se apenas com umas tábuas no meio do mar (7). Sabemos, aliás, como acaba a história. Discursos de ódio e ideias que julgávamos arrumados no cemitério das desgraças históricas voltam hoje a levantar a cabeça e a recriar os ovos da serpente do nazismo, dos fascismos e do ódio ao outro só porque ele é outro.

 

E, afinal, percebemos que quem nos salva não são os grandes financeiros ou grupos económicos, não são os bancos que guardam o nosso dinheiro para os emprestar tantas vezes a mãos sujas de sangue ou de indignidades, não são políticos ignorantes, egoístas ou impostores. Pelo contrário, quem nos salva são os que normalmente não valorizamos, esquecemos ou desprezamos: funcionários de limpeza ou da recolha do lixo, camionistas e trabalhadores de supermercado, agricultores e bombeiros, padres e voluntários, enfermeiros e médicos, professores e educadores, agentes de segurança e de protecção civil, etc. Com tantas mulheres aqui, no meio, elas que são normalmente mais desvalorizadas, desprezadas e humilhadas.

 

Como a D. Rosa, por exemplo, a senhora da limpeza cuja voz nos foi trazida por Fernando Alves, para nos falar n’“A Espantosa Realidade das Coisas”. Incluindo a de ter de limpar várias vezes o que pessoas supostamente cultas e educadas sujavam (propositadamente?) e cuja voz marcada pelos seus 50 anos de profissão nos ensinava uma dignidade assombrosa (8).

 

Um batalhão de verdadeiros heróis, de «pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espectáculo». Pessoas que «hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história»  e a tecer e sustentar «as nossas vidas», como também disse o Papa na oração de final de Março.

 

 

Comunidade e sacramentos, e provocações a quem crê

 

Faltou-nos, a quem crê, a experiência da comunidade. E essa é uma falta que o reinício das celebrações públicas não vai colmatar. Distância, higiene e máscaras são factores que temos de aceitar, mas que nos limitam naquela que é uma matriz fundadora do cristianismo – a comunidade. Os sacramentos, no caso do cristianismo, só o são porque há uma comunidade que os funda, os sustenta, os confirma e os partilha. Não existem sacramentos sem comunidade nem comunidade sem sacramentos. Por isso doeram-me muito os disparates ditos por quem acha que o sacramento é uma magia que salva só por si e poderíamos juntar-nos todos, em igrejas ou em Fátima – mesmo sabendo de tantos casos de encontros religiosos em que houve contágios alargados, já mesmo depois de levantadas as suspensões de cultos comunitários, como aconteceu sábado, 23 de Maio, na Alemanha, numa igreja baptista em Frankfurt. (9)

 

Por isso, a falta da experiência da comunidade sacramental é uma verdadeira provocação a quem crê, à capacidade de ver para lá do momento e do umbigo. E agora, o que fazemos? Como nos poderemos salvar? Com eucaristias, orações, cultos ou liturgias onde a comunidade deixa de existir fisicamente? Com a “igreja doméstica” que deveria ter sido preparada, alimentada, incentivada, ao longo das últimas décadas mas até agora, salvo poucas excepções, não passa de uma experiência inexistente para a maior parte dos crentes? Ou será, que, afinal, o clero não é necessário, uma vez que a vida espiritual de tantas pessoas continuou, mesmo se com o sobressalto da ausência da sacramentalidade comunitária? Aprendemos a usar as tecnologias ou, no fundo, fazemos delas novos púlpitos em que a suposta comunicação continua a ser apenas unidireccional? Como equilibramos a necessidade de nos salvarmos de uma doença fortemente contagiosa com essa matriz comunitária que transportamos? É também uma provocação, aliás, ouvir de um primeiro-ministro não-crente (António Costa) uma afirmação do mais elementar catecismo religioso – e cristão, desde logo: «O primeiro dever de cada uma e de cada um de nós é cuidar do próximo. É o de evitar que, por negligência, por desconhecimento, ponhamos em risco a saúde do outro...»

 

Penso que faltou em Portugal, da parte das lideranças católicas, uma palavra significativa, uma proposta criativa, um estender de mãos, um gesto intenso e de alcance universal, um apelo forte e veemente à mobilização comunitária. Certo: houve afirmações passageiras, pequenos momentos (Fátima foi um deles, mas soube a pouco para o que deveria acontecer), gestos multiplicados, mas nada que se aproximasse de um estremecimento de alma, como tantas vezes sentimos chegar dos cristãos italianos, por exemplo. Ou, por vezes, pareciam tentativas demasiado forjadas, sem correspondência com uma busca profunda de uma marca indelével.

 

Não podemos sair daqui mais sós, mais autocentrados, menos solidários. Nem a querer voltar à recuperação da economia que, em muitos discursos, mais não é que o querer continuar a consumir esforços de quem trabalha e recursos de um planeta que já está exangue. Antes teremos de retomar os profundos significados e apelos da Oração do Papa pela Humanidade, que ficará seguramente na história desta pandemia: pela força da palavra e do gesto, pela capacidade de reinventar leituras, pela expressividade das propostas, pelo despojamento.

 

Se a salvação da doença nos virá da ciência, a salvação da humanidade virá apenas da consciência solidária e comunitária. E aí, qualquer pessoa, mas cada crente e cada cristão, em concreto, tem de apelar ao melhor de si mesmo.

 

[António Marujo | Cofundador e diretor do "Sete Margens"]

 

 

Ligações
(1) Entrevista da agência Ecclesia ao patriarca de Lisboa..
(2) Cardeal Marto: «Não tenho objecção a confissão por vídeo, mas vejo-a como desnecessária».
(3) Oração do Papa pela Humanidade: «Estamos todos no mesmo barco. É o tempo de reajustar a vida. Só o conseguiremos juntos»
(4) António Guterres ao 7Margens: É preciso uma estratégia coordenada de supressão do vírus.
(5) A nossa pandemia, a peste medieval e o medo do contágio, ensaio de Rita Sampaio da Nóvoa.
(6) Acolher, dar e tratar: os mecanismos de assistência aos pobres e doentes na Idade Média, ensaio de Ana Rita Rocha.
(7) Afinal, não estamos todos no mesmo barco e é tempo de resolver isso.
(8) Programa "A Espantosa Realidade das Coisas", a partir do minuto 12’57”.
(9) Mais de 40 pessoas são infectadas com coronavírus em culto na Alemanha

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