75 anos da libertação de Auschwitz: «Nunca saí de lá»

Razões para Acreditar 27 janeiro 2020  •  Tempo de Leitura: 6

Sami Modiano tinha apenas oito anos quando se apercebe das leis raciais antes das medidas do Estado. Vivia, como tantas outras crianças, na ilha de Rodes, “a ilha das rosas”, que voltou a ver após vários anos, mas olhos desflorescidos. Hoje, aos 89 anos, não esquece o momento em que a segregação racial pairava entre os bancos da escola, fria e concisa como a expulsão que lhe foi comunicada pelo professor primário: «A minha infância acabou aos oito anos. Frequentava o terceiro ano quando fui expulso da escola, e naquele momento tive a minha primeira dor. O meu desejo era o de poder estudar, mas as leis raciais tiraram-me essa possibilidade». Assim, na ilha em que a brisa podia desvanecer as nuvens, enraíza-se uma sombra que o obscurece: «Não ser uma criança igual a todas as outras é um traço que me ficou desde então».

 

Para Sami Modiano a tragédia da deportação começa com uma infância interrompida, que o transforma de inocente a testemunha marcada pela culpa: «Tinha 13 anos e meio, era um jovem com a família e uma grande comunidade judaica de Rodes, que contava cerca de duas mil pessoas. Da minha família perdi cerca de 40 pessoas, entre as quais o pai e uma irmã, mas na realidade perdi duas mil, porque no fim salvámo-nos 31, e eu era o mais pequeno». Pode a culpa da humanidade pesar sobre as gráceis costas de um rapaz de 13 anos? É uma pergunta que Sami Modiano se fez muitas vezes na vida, sem encontrar resposta. Até 2005: «Após 60 anos voltei a Auschwitz-Birkenau. Dei-me conta de não ter esquecido uma vírgula, reencontrei-me lá como se fosse pela primeira vez». A voz cede, as palavras tornam-se secas, de uma dor cada vez mais universal: «Vi, vi, vi», diz três vezes, e nas pausas há toda uma vida suprimida nos campos de extermínio. «Quando me perguntam: “Sobreviveu?”, eu respondo: “Sim”, mas ainda estou lá, em Auschwitz-Birkenau, nunca saí de lá. Era um jovem: como posso eliminar aquilo que vi?»

 

«É por isto que saí vivo. Porque devo procurar transmitir aos jovens. Perscrutando as suas lágrimas naquele cemitério que se chama Birkenau, diante das câmaras de gás jurei que haveria de continuar. Virá o momento de me ir embora, mas irei sereno, consciente que aquilo que fiz, fiz com grande e devido empenho»



Depois de décadas, fez sua a missão de recordar, e neste processo entretecido de vida e morte decide diariamente dedicar-se aos mais jovens: «Quando acompanhei 300 estudantes do ensino secundário ao campo de concentração, apesar da minha dor, senti-me apoiado por eles. São eles a dar-me aquilo de que preciso, e por eles continuarei, até que Deus me dê a força para continuar, porque são eles que têm de fazer de maneira a que isto não aconteça nunca, nunca, nunca mais».

 

Pergunto-lhe se naquele que se chama “cemitério de Auschwitz-Birkenau” alguma vez interpelou Deus: «Perante aquilo que vivi no campo, perdi a fé, porque me perguntava onde estaria Deus nas crianças inocentes que eram mortas de maneira atroz. Foi uma interrogação que trouxe sempre comigo, até que recebi gestos humanos que me fizeram redescobrir a fé».

 

Sami Modiano viu Deus no aperto de mão de um rapaz ocorrido no momento da mais profunda solidão e desespero. Daquelas mãos apertadas no inferno nasceu uma grande amizade com Piero Terracina: «Naquele momento ajudámo-nos, não obstante a consciência que não sairíamos vivos de lá. Naquele campo da morte chegámos a adotarmo-nos como irmãos, sabendo que seríamos mortos, mas o Pai Eterno deu-nos a vida, e daquele momento em diante a nossa amizade foi qualquer coisa que não se pode explicar, um mistério insondável que nos liga ainda hoje, para além da morte». A sua voz interrompe-se pelas lágrimas, na recordação do amigo recentemente desaparecido.

 

Quando fala de Deus, Sami Modiano chama-o “Pai”: «Somos todos filhos de Deus, somos todos seres humanos sem qualquer diferença. Esta é a nossa tarefa, esta é a nossa missão», repete aos jovens que, a partir dos 15 anos, acompanha na visita ao campo de concentração em que viveu a infância e a adolescência.

 

“Por isto vivi” é a sua biografia. Uma resposta concisa a uma pergunta que o acompanhou durante toda a vida: «É por isto que saí vivo. Porque devo procurar transmitir aos jovens. Perscrutando as suas lágrimas naquele cemitério que se chama Birkenau, diante das câmaras de gás jurei que haveria de continuar. Virá o momento de me ir embora, mas irei sereno, consciente que aquilo que fiz, fiz com grande e devido empenho».

 
[Marco Grieco | In L'Osservatore Romano]

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