Francisco: morreu o Papa que quis ser médico de um hospital decampanha

Notícias 23 abril 2025  •  Tempo de Leitura: 13

Dois meses depois de ter sido eleito, o Papa Francisco deu uma entrevista à revista “La Civiltà Cattolica” em que usou uma expressão que se tornaria a chave de leitura do seu pontificado. “Vejo claramente que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de sarar feridas e de aquecer os corações dos fiéis; precisa de proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha”.

 

Grande parte do seu pontificado, incluindo muitos dos pontos altos e das polémicas, foi Francisco a tentar que a Igreja fosse hospital de campanha, um local onde curar, salvar e sarar são mais importantes do que seguir regras. Não é que as regras não sejam importantes, no seu contexto, mas ali os constrangimentos imediatos pesam mais.



Hospital de campanha é não hesitar em parar e abraçar (em vez de simplesmente dar uma bênção e seguir caminho) Vinicio Riva, o homem que sofria de uma doença rara que o deixara severamente desfigurado.

 

Hospital de campanha é telefonar pessoalmente a uma mãe solteira que tinha escrito uma carta a desabafar que o pároco não batizava o seu filho, como é também telefonar todos os dias para a paróquia católica de Gaza, um hábito que manteve mesmo nos últimos dias que passou no hospital em Roma.

 

Hospital de campanha é fazer a primeira viagem pastoral fora de Roma para Lampedusa, a ilha onde todos os dias chegam à Europa imigrantes, os mesmos imigrantes com quem o Papa fez questão de se identificar na sua autobiografia, quando sublinhou as raízes imigrantes da sua própria família, e a quem defendeu na carta aos bispos americanos, sobre as políticas anti-imigração de Donald Trump, naquilo que constituiu um dos seus últimos atos oficiais.

 

Francisco (1936-2025): morreu o Papa que quis ser médico de um hospital de campanha
Vatican Pool

 

Desde o primeiro dia em que apareceu à janela de São Pedro que a imprensa e muitos fiéis o contrastaram com Bento XVI. As comparações aceitam-se, mas iam longe de mais. Ambos coincidiam no diagnóstico: o mundo está doente, o secularismo ocidental não responde aos anseios da humanidade e cresce a intolerância religiosa, incluindo no próprio ocidente, para com os cristãos. A diferença estava no remédio.

 

Bento XVI falou de um futuro em que os cristãos aceitavam o estatuto de minoria criativa, salvaguardando o depósito da fé enquanto o mundo ruía à sua volta, para mais tarde poder reconstruir, enquanto Francisco via a Igreja a ir ao encontro das muitas vítimas das ideologias, do vazio espiritual, do colapso das famílias e das guerras, para lhes oferecer a misericórdia e a esperança, precisamente os dois temas dos anos santos que proclamou durante o seu pontificado. Se isto não é ser hospital de campanha, o que é?

 

Hospital de campanha é ainda o gesto de se ajoelhar e beijar os pés de três dos líderes de um dos países mais pobres do mundo, o Sudão do Sul, suplicando que deponham as armas e assim garantindo uma paz frágil mas que ainda dura; como é clamar pela paz no conflito entre a Rússia e a Ucrânia, apesar de sem sucesso e à custa de uma fama de russófilo que ficará como uma das maiores injustiças do seu pontificado.


Francisco (1936-2025): morreu o Papa que quis ser médico de um hospital de campanha
Franco Origlia

 

Tal como foi hospital de campanha aquela frase que continua a ecoar desde a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, de que as portas da Igreja estão abertas a “todos, todos, todos”.

 

Foi no espírito de hospital de campanha que Francisco abriu aos recasados as portas dos sacramentos, insistindo que estes devem ser encarados como remédio para os doentes e não como prémio para os perfeitos, e foi com o mesmo espírito que publicou o documento Fiducia Supplicans, esclarecendo que qualquer pessoa pode receber uma bênção, independentemente das relações em que está envolvido.

 

Mas o Fiducia Supplicans serve também para exemplificar algumas das coisas que correram mal neste pontificado. A apresentação do documento foi um desastre e violou o princípio básico (que viria mais tarde a ser incluído como recomendação no documento final do sínodo sobre a sinodalidade) de que algo que mexe em temas sensíveis tem de ser discutido primeiro com as igrejas locais. O resultado foi uma trapalhada do ponto de vista da comunicação e uma divisão sem precedentes na Igreja, com continentes inteiros a rejeitar a sua aplicação.

 

Talvez tenha sido esta uma das grandes fraquezas do Papa Francisco, o seu comportamento por vezes errático, contrariando os seus próprios apelos à sinodalidade, e que foi piorando na fase final do seu pontificado, passando por nomeações de aliados para posições importantes noutros países, ignorando os riscos diplomáticos – vide a nomeação de McElroy, um feroz crítico de Donald Trump, para arcebispo de Washington nas vésperas da tomada de posse do presidente americano – e incluindo as escolhas por vezes incompreensíveis de cardeais. O anúncio da lista de futuros cardeais no último consistório a que presidiu apanhou até a sala de imprensa do Vaticano de surpresa.


Francisco (1936-2025): morreu o Papa que quis ser médico de um hospital de campanha
Paula Bronstein

 

Em várias áreas importantes do seu pontificado Francisco apresentou incoerências que os seus críticos apelidavam de hipocrisia e que mesmo os seus aliados tinham dificuldade em explicar.

 

O Francisco do “quem sou eu para julgar?” é o mesmo que disse que já existe demasiada “maricagem” na Igreja; o arauto da caridade podia ser impiedoso com os seus opositores dentro da hierarquia e o mesmo Papa que melhorou as normas para lidar com casos de abuso sexual manteve em funções até ao final do seu pontificado um arcebispo que tentou reabilitar, de forma ilegal, um padre condenado em duas instâncias no tribunal canónico por abuso sexual de menores.

 

Francisco permitiu ainda que o bispo Gustavo Zanchetta, acusado de abuso sexual na Argentina, ocupasse um cargo em Roma, mesmo depois da sua condenação, e só decidiu reabrir o caso do padre esloveno Marko Rupnik, acusado de gravíssimos abusos de religiosas de quem era diretor espiritual, depois de a pressão mediática se tornar insustentável.

 

PORTUGAL PRIVILEGIADO

Desde a primeira hora do seu pontificado, quando afirmou que tinha vindo do “fim do mundo”, Francisco deixou claro que o seu ministério não seria eurocêntrico. Se é compreensível a sua vontade de ir às periferias da Igreja, visitando locais como a Papua Nova Guiné, a República Centro-Africana e a Mongólia, o facto de ter conseguido completar quase 12 anos de pontificado sem ter feito uma única viagem apostólica a Espanha, Alemanha ou Áustria, e de apenas ter ido a locais marginais em França, sem ter posto os pés em Paris, não pode ser reduzido a um mero acaso.

 

De igual modo, e apesar de ter visitado os Estados Unidos em 2015, ficou claro que o Papa não entendia, ou não queria entender, a comunidade católica americana, parecendo tomar como real o estereótipo de uma Igreja política e pastoralmente polarizada, quando a realidade é muito mais variada.

 

a sua relação com Portugal foi muito diferente. Apesar de o atual Patriarca de Lisboa não ter sido feito cardeal no primeiro consistório depois da sua nomeação, como manda uma bula que nunca foi revogada, o país está bem representado no Colégio Cardinalício, com D. José Tolentino Mendonça e D. Américo Aguiar a juntarem-se aos ainda eleitores D. António Marto e D. Manuel Clemente, com outros dois – D. Manuel Monteiro de Castro e D. José Saraiva Martins – já acima dos 80 anos.

 

Nunca Portugal teve tantos príncipes da Igreja, e Francisco deu indicações claras de ver tanto no Cardeal Tolentino como no Cardeal Américo homens da sua confiança e por quem nutria uma enorme estima.

 

Francisco visitou ainda Portugal em 2017 para a canonização de Francisco e Jacinta Marto e presidiu à Jornada Mundial da Juventude em 2023, em Lisboa, a última do seu pontificado, sublinhando o Papel de Portugal para a evangelização do mundo, tanto no passado como no futuro, mostrando assim que não colocava o país no mesmo cesto da Velha Europa que olimpicamente ignorou durante mais de uma década.

 

O LEGADO

Francisco tinha um estilo muito próprio, e até raro na Igreja, mesmo entre os que seguem mais a sua linha teológica e pastoral. Não é expectável, por isso, que o próximo Papa seja uma cópia fiel, e tendo em conta as profundas divisões que existem na Igreja – e que se agravaram durante o seu pontificado sem que, em muitas ocasiões, isso lhe pareça ter preocupado – talvez até seja bom que não.

 

Mas nalgumas coisas as mudanças empreendidas pelo Papa argentino não deverão ser revertidas. Acabaram-se os tempos dos sínodos em que os bispos presentes simplesmente assinavam por baixo os documentos finais preparados de antemão nos gabinetes da Curia romana, sem surpresas nem novidades. O processo do Sínodo para a Sinodalidade criou nos fiéis a natural expetativa de que todos podem ser ouvidos e que as suas opiniões contarão para algo, tanto fora como dentro da assembleia sinodal

 

Também o Colégio dos Cardeais é agora muito mais representativo da Igreja Universal, em vez de um clube para altos quadros da Curia e arcebispos das grandes arquidioceses historicamente mais influentes do mundo, embora não seja nada claro em que é que isso vai dar no conclave que agora se adivinha.

 

De igual modo, para muitos dos católicos que apenas se aproximaram da Igreja porque as palavras e os gestos do Papa lhes mostraram que esta é também a sua casa, apesar de as suas vidas não alinharem a 100% com o catecismo, é impensável o regresso a uma linguagem que sublinha as condições para se passar do adro.


Francisco (1936-2025): morreu o Papa que quis ser médico de um hospital de campanha
Jeff J Mitchell

 

O próximo Papa não será Francisco, como Francisco não foi Bento e Bento não foi João Paulo. Mas será uma pena se o homem que se segue não der continuidade àquilo que talvez seja o mais rico legado de Francisco: esta visão de uma Igreja que se recusa a desistir do mundo apesar de o mundo estar cansado e doente; de uma Igreja onde todos cabem, mesmo aqueles que julgavam estar excluídos; de uma Igreja que brada esperança de manhã e estende misericórdia ao anoitecer, e de uma Igreja que não tem medo de ir para o campo de batalha, não para se enfiar numa trincheira, mas para ser hospital de campanha.

 

[Filipe d'Avillez | Expresso]

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