Francisco no Iraque: Insensato, audaz, louco – portanto profético

Vaticano 12 março 2021  •  Tempo de Leitura: 5

Histórica, apesar dos riscos de segurança e sanitários que até ao fim se puderam converter na sombra de uma anulação: mais do que uma audácia, a viagem de Francisco ao Iraque durante vários dias era uma loucura. Insensata, portanto profética, interpela melhor, e o eco da mensagem ressoa mais alto.

 

Para além de hipotéticos frutos políticos, o alcance humano e espiritual imediato do gesto é imenso. Nele residiam todas as implicações pastorais. Ao articular fraternidade e cuidado, é um papa peregrino que, depois de um ano “em branco” por causa da pandemia, retomou a estrada. Após o início do pontificado, de Lampedusa aos territórios palestinianos, da República Centro-Africana à Colômbia, mostrou a sua predileção pelas regiões mais próximas das fraturas e das feridas do mundo.

 

Pastor e enfermeiro de uma Igreja que deseja como «hospital de campanha», «para os pobres», apesar dos sinais visíveis de fatiga, compromete-se pessoalmente e coloca-se em perigo, quando muitos outros se contentam com lições ao longe; desta maneira, dá carne aos seus discursos e traduz a sua encíclica “Fratelli tutti” em atos. Melhor: ao colocar-se à escuta da voz das «periferias», obriga-nos a dirigir para elas a nossa atenção.

 

Com efeito, por trás das palavras e dos conceitos agitados na ressaca da atualidade – perseguição aos uigures, repressão em Myanmar, uma década de guerra na Síria, atentados na Somália, catástrofes e mudanças climáticas, etc. –, os ouvidos habituam-se, e, com demasiada frequência, os olhares desviam-se, por impotência, cobardia, indiferença. A inacreditável complexidade deste mundo que oscila entre interconexão absoluta e retirada radical poderia quase nos faz esquecer que, por trás das análises eruditas, há vidas de mulheres e homens em jogo.

 

Fiéis, padres, religiosos, associações no terreno, trabalhadores e trabalhadoras invisíveis, ao serviço da paz e do diálogo: esta obra quase impercetível irriga e permite que, por vezes, surjam gestos espetaculares, e que uma dessas vidas ocultas saia repentinamente do anonimato, à imagem de Ann Nu Thawng


Sobre tudo isto, o papa age como sentinela das nossas consciências. Que chefe de Estado pode pretender abraçar as alegrias, as esperanças, as tristezas e as angústias do nosso tempo? Que chefe religioso é capaz de juntar representantes de todas as confissões e de fazer elevar a sua voz muito para além dos crentes católicos unicamente?

 

Quer seja aquando das suas deslocações mais mediatizadas ou na discrição das suas orações do Angelus na praça de S. Pedro, ele chama cada pessoa a deixar tocar-se pelo grito dos pobres, recorda que os destinos humanos nunca são estrangeiros, mas solidários. As suas palavras aos iraquianos não afirmam outra coisa: «Não estais sós! Toda a Igreja vos está próxima, pela oração e pela caridade concreta. (…) Não cesseis de sonhar! Não vos rendais, não percais a esperança!».

 

Se o bispo de Roma pode assestar os olhares para os sofrimentos do mundo, é porque em cada recanto, mesmo o mais desesperado, as comunidades cristãs vivem e acompanham os povos, sonham, combatem, choram e rejubilam com eles. Fiéis, padres, religiosos, associações no terreno, trabalhadores e trabalhadoras invisíveis, ao serviço da paz e do diálogo: esta obra quase impercetível irriga e permite que, por vezes, surjam gestos espetaculares, e que uma dessas vidas ocultas saia repentinamente do anonimato, à imagem de Ann Nu Thawng, religiosa que se interpôs de joelhos entre a polícia e os manifestantes em Myanmar. Vidas já dadas e prontas a dar-se de novo.

 

Histórica, por fim, esta viagem ao Iraque não o é apenas pela força frágil da peregrinação de um homem nas estradas de Mossul ou Qaraqosh; é-o sobretudo pela loucura dos apelos que ele mais uma vez fez escutar. O perdão. A esperança. O encontro. Insensatos aos olhos do mundo, portanto proféticos.

 
[Aymeric Christensen | In La Vie]

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