A histórica peregrinação de Francisco ao Iraque

Vaticano 4 março 2021  •  Tempo de Leitura: 7

Se conseguir realmente cumpri-la – até ao último momento estaremos inevitavelmente com a respiração suspensa –, não há dúvida de que a visita do papa ao Iraque será um acontecimento histórico. Em vista do ano jubilar de 2000, S. João Paulo II tinha-a programado, mas no fim Saddam Hussein decidiu que não; o papa desejava-a muito porque era a ocasião para celebrar os inícios da história da salvação: com efeito, Abraão partiu de Ur dos Caldeus, no sul do Iraque. Este significado não é decerto estranho à viagem do papa Francisco, mas talvez hoje a acentuação recaia sobretudo em aspetos que caracterizam maioritariamente o atual pontificado. Vejamos quais podem ser.

 

Antes de tudo, direi que o papa Bergoglio tem no coração a difícil situação do país, atormentado por guerras decididas algures, mas também por lutas intestinas. E, naturalmente, a situação dos cristãos neste contexto. Na audiência aos participantes na reunião das Obras de Ajuda às Igrejas Orientais, a 10 de junho de 2019, expressou-se desta maneira: «Um pensamento insistente acompanha-me, refletindo sobre o Iraque — onde tenho vontade de ir no próximo ano — para que possa olhar em frente através da participação pacífica e compartilhada na construção do bem comum de todos os componentes da sociedade, até religiosos, e não volte a cair em tensões que derivam dos conflitos nunca resolvidos das potências regionais».

 

Afirmação reiterada ao presidente iraquiano, a 25 de janeiro de há um ano, na qual declarava querer contribuir para a estabilidade e para o processo de reconstrução do país, encorajando a via do diálogo e da busca de soluções adequadas em favor dos cidadãos e no respeito da soberania nacional, a par da importância de «preservar a presença histórica dos cristãos» e «a necessidade de garantir a sua segurança e um lugar no futuro do país».

 

O profeta não está preocupado no número de pessoas que o seguem ou em quantos “gosto” recebe nas redes sociais: é-lhe mais urgente que a religião seja uma força de paz reconhecida; é-lhe mais urgente a fraternidade


Sob Saddam Hussein havia quase um milhão e meio, hoje estão reduzidos a cerca de trezentos mil, nas melhores estimativas. Além da guerra, houve a desgraçada tentativa de instauração de um estado islâmico fundamentalista por meio do Isis (Daesh), aliás financiado e sustentado por potências fronteiriças e armado inclusive pela Europa. É triste dizê-lo, mas é assim. Os cristãos que permaneceram, hoje, terminadas as perseguições ativas, não se encontram numa boa situação, e informam-nos de uma vida muito difícil para a população em geral e em particular para eles.

 

O papa, por isso, vai para apoiar os pastores e os rebanhos, para lhes oferecer uma ocasião de se reencontrarem, de fazerem festa, de sentirem-se visitados pelo Senhor Jesus através do sucessor de Pedro.

 

A finalidade ecuménica também é evidente: o papa Francisco acredita muito, e justamente, neste ir encontrar em sua casa os irmãos das outras confissões cristãs. É o estilo de vida de uma Igreja em saída. Será acompanhado pelo Card. Leonardo Sandri, prefeito da Congregação das Igrejas Orientais, que segue com atenção e afeto esta parte do mundo cristão onde residem as origens da fé bíblica e do cristianismo: a Igreja caldeia, a Igreja siríaca, a Igreja assíria são Igrejas da primeira hora, guardiãs do património originário dos discípulos de Jesus.

 

O ecumenismo, aqui no Médio Oriente, é o pão de cada dia, rico de antigas feridas e divisões, mas também de surpreendentes entendimentos e convivências, sobretudo nas famílias em que não raro há múltiplas pertenças.

 

É claro que este encontro se situa na esteira daquele de Abu Dhabi. São encontros que na Europa são liquidados rapidamente, seja por causa do escasso interesse por esta parte do mundo e de humanidade, mas também porque considerados algo utópicos ou temerários, quando não alvo de críticas. Erguer muros e sublinhar diferenças identitárias parece ser a única via possível, segundo muitos, quer da parte muçulmana quer cristã


Mas seguramente um dos motivos principais é este: o interesse para com o mundo muçulmano, desta vez xiita. Com efeito, está prevista uma etapa em Najaf, um dos berços xiitas, meta de peregrinações de todo o mundo, onde reside o grande aiatóla Sayyd Ali-Husaymi Al Sistani, a mais alta autoridade xiita do Iraque, a quem o papa Francisco reservará uma visita privada.

 

É claro que este encontro se situa na esteira daquele de Abu Dhabi. São encontros que na Europa são liquidados rapidamente, seja por causa do escasso interesse por esta parte do mundo e de humanidade, mas também porque considerados algo utópicos ou temerários, quando não alvo de críticas. Erguer muros e sublinhar diferenças identitárias parece ser a única via possível, segundo muitos, quer da parte muçulmana quer cristã. Nada de mais errado.

 

Só conhecendo-se, só encontrando-se, só buscando acordos sobre temas do bem comum como a paz, a liberdade religiosa, a convivência civil, etc., se pode esperar desarmar o apoio, muitas vezes dissimulado, às forças extremistas. O papa e quantos o seguem situam-se numa linha profética. O profeta não está preocupado no número de pessoas que o seguem ou em quantos “gosto” recebe nas redes sociais: é-lhe mais urgente que a religião seja uma força de paz reconhecida; é-lhe mais urgente a fraternidade.

 

Estas visitas do papa, por isso, são uma maneira para realizar concretamente o que está expresso na encíclica “Fratelli tutti”: se temos um só Pai, devemos encontrar-mo-nos como irmãos para debater juntos os inimigos comuns: a indiferença para com Deus e a contraposição que gera ódio e violência; e promover a salvaguarda da criação e vias de desenvolvimento sustentável e acessíveis a todos.

 

[Paolo Bizzeti | Vigário apostólico da Anatólia |In SIR]

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