3ª meditação da quaresma: Desprezámos a riqueza das emoções
A sede de Deus e a capacidade de a reconhecer estiveram no centro da segunda meditação de hoje do P. José Tolentino Mendonça, pregador dos Exercícios Espirituais para o papa e a Cúria Romana que decorre até sexta-feira em Ariccia, próximo do Vaticano.
O poeta e teólogo português apontou, sob o título «dei-me conta de estar com sede», a predisposição de alma e os instrumentos necessários para interpretar o desejo de Deus que está em nós, a contemplá-lo e a educá-lo para valorizar a espiritualidade da sede. Neste contexto, o biblista sublinhou que «entrar em contacto com a própria sede não é uma operação fácil, mas se não o fazemos a vida espiritual perde adesão à nossa realidade».
Tomar consciência da nossa sede
Temos por isso de perder o medo de reconhecer a nossa sede e a nossa secura. Como primeira ação, o P. Tolentino exortou a não se intelectualizar demasiadamente a fé:
«Construímos um fenomenal castelo de abstrações. Não é por acaso que a teologia dos últimos séculos se deteve tanto tempo a debater as questões levantadas pelo Iluminismo e se tenha afastado das colocadas, por exemplo, pelo Romantismo, como as da identidade, coletiva e pessoal, do emergir do sujeito ou do mal de viver.
Estamos mais preocupados com a credibilidade racional da experiência da fé do que com a sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva. Ocupamo-nos mais da razão do que do sentimento. Deixamos para trás das costas a riqueza do nosso mundo emocional».
O ser humano é uma «mistura de muitas componentes emocionais, psicológicas e espirituais, e de todas devemos ganhar consciência». Assim como a vida espiritual não é prefabricada mas está «envolvida na radical singularidade de cada sujeito».
Falar da sede é falar da existência real, e não da ficção de nós mesmos à que tantas vezes nos adaptamos, é iluminar uma experiência, mais do que um conceito. Por isso é preciso sacudir o torpor quotidiano porque «pode acontecer que tenhamos a maior dificuldade até mesmo de admitir que estamos com sede». Um dos requisitos para receber a água da vida é reconhecermo-nos com sede.
Interpretar a sede
Depois de tomar consciência da própria sede, é preciso interpretar esta necessidade que existe em nós. O P. Tolentino evidenciou que nesta fase deve distinguir-se o desejo de uma mera necessidade, que se aplaca e se satisfaz com a posse de um objeto:
«Não confundamos o desejo com as necessidades. O desejo é uma falta nunca completamente satisfeita, é uma tensão, uma ferida sempre aberta, uma interminável exposição à alteridade. O desejo é uma aspiração que nos transcende e que não determina, como a necessidade, um termo e um fim. A necessidade é uma carência contingente do sujeito. O infinito do desejo é desejo de infinito».
«O desejo humano diferencia-se do desejo dos animais», e ser humano significa «sentir que a existência depende deste reconhecimento mais do que qualquer outra coisa». Este anseio é mortificado nas sociedades capitalistas, que exploram avidamente as conpulsões de satisfação de necessidade induzida, removendo a sede e o desejo tipicamente humanos.
Na prática, o discurso capitalista promete libertar o desejo das inibições da lei e da moral em nome de uma satisfação ilimitada. E quando isto se verifica, «o prazer, a paixão, a alegria a esgotarem-se num consumismo desenfreado, tanto de objetos como de pessoas», chega-se à extinção da sede, à agonia do desejo. A vida perde o seu horizonte.
A sede de Deus
«Como o veado anseia pela água.» O P. Tolentino referiu-se ao Salmo 42 para realçar a busca para saciar a sede de Deus. Se se contempla o mundo com amor, descobre-se que «é todo o Criado a ser atravessado por este desejo visceral».
O primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura apelou à valorização da espiritualidade da sede, mais que as estruturas: «Talvez precisemos de redescobrir o desejo, a sua itinerância e abertura, em vez das codificações em que tudo está previsto, estabelecido, garantido. A experiência do desejo não é um título de propriedade ou forma de possessão; é antes uma condição de mendicidade. O crente é um mendigo de misericórdia».
A concluir, o P. Tolentino dirigiu-se em particular aos pastores, chamando-os à reconciliação com a sua vulnerabilidade, e recordou a advertência do papa Francisco: «Uma das piores tentações é a auto-suficiência e a auto-referencialidade». Ao contrário, abraçar a própria vulnerabilidade e aceder ao desejo de ser reconhecido e tocado como o leproso que foi ter com Jesus (cf. Mateus 8, 3), como a sogra de Pedro na cama com a febre (cf. Mateus 8, 15), como a mulher que há 12 anos sofria de hemorragias (cf. Mateus 9, 20), como aqueles que gritavam «Filho de David, tem piedade de nós!» (Mateus 8, 27).