Gino Cecchettin, o discurso no funeral da filha Giulia. Texto integral

Razões para Acreditar 2 janeiro 2024  •  Tempo de Leitura: 9

Caríssimos,

 

vivemos um tempo de profunda angústia: uma terrível tempestade nos atingiu e mesmo agora essa chuva de dor parece não ter fim.

 

Ficamos molhados, regelados, mas agradeço às tantas pessoas que se reuniram ao nosso redor para nos trazer o calor do seu abraço.

 

Peço desculpas pela impossibilidade de responder pessoalmente, mas obrigado novamente pelo seu apoio de que precisávamos nestas semanas terríveis.

 

Que a minha gratidão chegue também a todas as forças policiais, ao bispo e aos monges que nos hospedam, ao presidente da Região Zaia e ao ministro Nordio e às instituições que em conjunto ajudaram a minha família.

 

Minha filha Giulia era exatamente como vocês a conheceram, uma jovem mulher extraordinária. Alegre, animada, sempre disposta a aprender.

 

Ela abraçou a responsabilidade da gestão familiar após a perda prematura de sua amada mãe.

 

Além do diploma que mereceu e que nos será entregue daqui a alguns dias, Giulia também conquistou o título honorário de mãe.

 

Apesar da pouca idade, ela já havia se tornado uma lutadora, uma hoplita, como os antigos soldados gregos, tenaz nos momentos de dificuldade: seu espírito indomável inspirou a todos nós.

 

O feminicídio é muitas vezes o resultado de uma cultura que desvaloriza a vida das mulheres, vítimas justamente daqueles que deveriam amá-las, mas que, em vez disso, foram assediadas, forçadas a longos períodos de abusos até perder completamente a liberdade antes de perder também a vida.

 

Como tudo isso pode acontecer? Como pôde acontecer com Giulia?

 

Há muitas responsabilidades, mas aquela educativa envolve todos nós: famílias, escolas, sociedade civil, mundo da informação...

 

Dirijo-me primeiro aos homens, porque nós, primeiro, devíamos demonstrar que somos agentes de mudança contra a violência de gênero. Conversemos com outros homens que conhecemos, desafiando a cultura que tende a minimizar a violência cometida por homens aparentemente normais.

 

Deveríamos estar ativamente envolvidos, desafiando a difusão de responsabilidades, ouvindo as mulheres e não virando a cabeça diante dos sinais de violência, mesmo os menores. A nossa ação pessoal é crucial para quebrar o ciclo e criar uma cultura de responsabilização e apoio.

 

Para quem é pai como eu, falo com o coração: vamos ensinar aos nossos filhos o valor do sacrifício e do empenho e vamos também ajudá-los a aceitar as derrotas.

 

Criemos nas nossas famílias aquele clima que favoreça um diálogo sereno, para que se torne possível educar os nossos filhos ao respeito da sacralidade de cada pessoa, a uma sexualidade livre de qualquer posse e ao amor verdadeiro que busca apenas o bem do outro.

 

Vivemos numa época em que a tecnologia nos mantêm em conexão de formas extraordinárias, mas muitas vezes, infelizmente, isola-nos e priva-nos do contato humano real.

 

É essencial que os jovens aprendam a comunicar de forma autêntica, olhar nos olhos dos outros, abrir-se à experiência de quem é mais velho que eles.

 

A falta de conexão humana autêntica pode levar a mal-entendidos e decisões trágicas.

 

Precisamos redescobrir a capacidade de escutar e ser escutados, de comunicarmos realmente com empatia e respeito.

 

A escola tem um papel fundamental na formação dos nossos filhos.

 

Devemos investir em programas educacionais que ensinem o respeito mútuo, a importância de relações saudáveis e a capacidade de gerir os conflitos de forma construtiva para aprender a lidar com as dificuldades sem recorrer à violência.

 

A prevenção da violência de gênero começa nas famílias, mas continua na sala de aula e devemos garantir que as escolas sejam lugares seguros e inclusivos para todos.

 

As mídias também desempenham um papel crucial a ser desempenhado de forma responsável. A difusão de notícias distorcidas e sensacionalistas não só alimenta uma atmosfera mórbida, dando espaço a chacais e teóricos da conspiração, mas também pode contribuir para perpetuar comportamentos violentos.

 

Considerar-se fora, buscar justificativas, defender o patriarcado quando alguém tem a força e o desespero de chamá-lo pelo nome, transformar as vítimas em alvos só porque dizem algo com que talvez não concordemos, não ajuda a derrubar as barreiras. Porque deste tipo de violência que é só aparentemente pessoal e insensata só se pode sair sentindo que estamos todos envolvidos. Mesmo quando seria fácil sentir-se absolvidos.

 

Peço às instituições políticas que deixem de lado as diferenças ideológicas para enfrentar de forma unitária o flagelo da violência de gênero. Precisamos de leis e programas educacionais destinados a prevenir a violência, proteger as vítimas e garantir que os culpados sejam responsabilizados pelas suas ações. As forças da lei devem estar dotadas com os recursos necessários para combater ativamente essa praga e com instrumentos para reconhecer o perigo.

 

Mas neste momento de dor e tristeza, devemos encontrar a força para reagir, para transformar a tragédia num impulso para a mudança.

 

A vida de Giulia, a minha Giulia, nos foi tirada de modo cruel, mas sua morte pode, aliás, DEVE ser o ponto de virada para pôr fim ao terrível flagelo da violência contra as mulheres. Obrigado a todos por estarem aqui hoje: que a memória de Giulia nos inspire a trabalhar juntos para criar um mundo onde ninguém tenha que temer pela própria vida.

 

Quero ler para vocês uma poesia de Gibran que acredito possa dar uma representação real de como se deveria aprender a viver:

 

"O verdadeiro amor não é nem físico nem romântico.

O verdadeiro amor é a aceitação de tudo o que é, foi, será e não será.

As pessoas mais felizes não são necessariamente aquelas que têm o melhor de tudo, mas aquelas que tiram o melhor do que têm.

A vida não é sobre como sobreviver à tempestade, mas como dançar na chuva...".

 

Cara Júlia,

 

É hora de te deixar ir. Dá um olá por nós à mamãe.

 

Penso em ti abraçada a ela e tenho a esperança de que, juntas, o vosso amorseja tão forte para ajudar Elena, Davide e a mim também, não só para sobreviver a esta tempestade de dor que nos assolou, mas também para aprender a dançar na chuva.

 

Sim, nós três que ficamos prometemos que, aos poucos, aprenderemos a dar passos de dança sob essa chuva.

 

Cara Giulia, obrigado por esses 22 anos que vivemos juntos e pela imensa ternura que tu nos doaste.

 

Eu também te amo tanto e Elena e Davide também te adoram.

 

Não sei rezar, mas sei ter esperança: é isso, quero esperar junto contigo e com a mamãe, quero esperar junto com Elena e Davide e quero esperar junto com todos vocês aqui presentes: quero ter esperança que toda essa chuva de dor fecunde o solo das nossas vidas e quero ter esperança que um dia possa germinar.

 

E quero ter esperança de que produza o seu fruto de amor, de perdão e de paz.

 

Adeus Giulia, meu amor.

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

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