É possível fazer alguma coisa, por Tolentino Mendonça

Crónicas 14 março 2019  •  Tempo de Leitura: 5

Começou agora a quaresma. Para os cristãos é uma oportunidade que é preciso agarrar com decisão. Mas, mesmo para os não cristãos, pode não ser indiferente o significado deste itinerário ascético que antecede e prepara a Páscoa. Claro que é ainda necessário sacudir os vestígios dos lugares comuns que reduziram a quaresma ao simbólico interdito da carne, na ementa das sextas-feiras, e criaram todo um anedotário em que a abstenção do bife era substituída, pelas boas almas piedosas, por um repasto de marisco, pois o importante era cumprir formalmente a regra. A quaresma, porém, é bem mais interessante do que essa triste caricatura. E é-o, porque nos recorda, contra os fatalismos paralisantes e contra a nossa própria acomodação, que é sempre possível fazer alguma coisa. Esta: colocar-se cada um em revisão crítica, metendo em causa os próprios estilos de vida. O programa quaresmal é, assim, pessoal e prático. Trata-se de agir sobre si mesmo e contribuir desse modo para o emergir de uma consciência comunitária mais atenta.

 

As ‘ferramentas’ que a tradição cristã propõe são de natureza ascética e servem em outras religiões e até em contexto laico para alcançar o mesmo objetivo: uma necessária conversão de vida a partir do esforço de cada um. Essas ‘ferramentas’ são: o jejum, a oração e a esmola. Há que aprender ou reaprender a utilizá-las em chave existencial.

 

O jejum, por exemplo, começa por ser uma privação alimentar voluntária, mas que nos põe a refletir, e de forma não só mental, sobre aquilo de que nos nutrimos nós e como o fazemos. Na mensagem quaresmal para este ano, o Papa Francisco explica que o jejum permite-nos “passar da tentação de ‘devorar’ tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor”. O jejum pode tornar-se assim um élanpara modificar e reorientar o nosso modo de habitar o mundo. E é uma questão de comida, claro. Porém, não se esgota aí. O jejum introduz uma ponderação crítica sobre tudo o que nos serve de alimento: palavras, imagens, hábitos, consumos, prazeres.

 

O programa quaresmal é pessoal e prático. Trata-se de agir sobre si mesmo e contribuir desse modo para o emergir de uma consciência comunitária mais atenta

 

A oração, por sua vez, é um antídoto contra a autossuficiência e contra o endeusamento das nossas possibilidades ou necessidades, abrindo em nós um espaço ao que é maior do que nós. Precisamos romper com o circuitado movimento que nos faz rodopiar à volta de nós mesmos ou então dispersos em pura exterioridade, consumidos pelo puro imediatismo. A oração abre-nos a um para lá, introduz-nos noutro ritmo, faz-nos respirar de outra forma, ajuda-nos a levantar os olhos que trazemos fixos sobre os sapatos e erguê-los até às estrelas.

 

Por último, a esmola serve para nos recordar que os bens são meios ao serviço de uma vida eticamente qualificada e não uma finalidade da nossa existência. Justamente, o Papa recorda que precisamos de praticar a partilha dos bens “para sair da insensatez de viver a acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de assegurarmos um futuro que não nos pertence”.

 

O tema proposto por Francisco para a quaresma de 2019 recupera um passo da ‘Carta de São Paulo aos romanos’: “A criação encontra-se em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8, 19). E o diagnóstico de que parte é, em si mesmo, um chamamento a uma ecologia integral, quando nos lembra que “tantas vezes adotamos comportamentos destruidores do próximo e das outras criaturas — mas também de nós próprios —, considerando, de forma mais ou menos consciente, que podemos usá-los como bem nos apraz”. De facto, cada um pode fazer alguma coisa para que o jardim comum não se torne um deserto.

 

[SEMANÁRIO#2419 - 9/3/19]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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