Há desertos impossíveis de atravessar?

Crónicas 31 outubro 2018  •  Tempo de Leitura: 3

Somos feitos de paisagens. É debaixo da pele que guardamos os instantes que nos mudaram para sempre. Os que nos fizeram estremecer para, depois, nos tornarem mais fortes. Os que nos permitiram conhecer as pessoas da nossa vida. Os que nos fizeram recomeçar. Os que nos fizeram pôr um ponto final no que já não nos dava sentido. É debaixo da pele, e nas paredes do coração, que dormem todas as nossas histórias e aventuras. Umas mais trágicas que outras. Umas mais alegres. Umas mais tranquilas e outras que carregam o estrondo de uma tempestade (ainda que já tenham sido vividas há muito tempo).
Somos feitos de cenários de guerra, também. Há momentos em que somos obrigados a desbravar caminho sem saber quais os monstros que nos poderão fazer cair. Somos obrigados a ir limpar as armas que a vida nos deu para enfrentar o que vier. No entanto, e enquanto não bebemos a força necessária para a próxima batalha, vivemos uma espécie de travessia do deserto. Parece-nos que caminhamos sozinhos e sem luz que nos guie. Parece-nos que o calor nos tira o fôlego e não se vislumbra a promessa de uma fonte ou de um fio de água. Parece-nos que a tempestade de areia nos cega e não nos deixa ver o caminho. De olhos semicerrados, avançamos sem saber como. É uma travessia sem barulho de risos ou de pássaros. É como se o silêncio se fizesse golpe e, ao ferir-nos, nos ganhasse.


Deixem-me esclarecer que as travessias do deserto são diferentes para cada um de nós e ninguém sabe, realmente, quando estamos a fazê-las. Podemos imaginar, quando estamos atentos, que aqueles olhos sem brilho (que adivinhamos neste amigo ou naquela pessoa da família) são olhos de quem só pode estar a travar uma batalha. Mas nunca podemos ter a certeza do impacto desta travessia em cada um dos que se cruzam connosco.


Como é que se atravessa o deserto?


A verdade é que não há estratégias que nos sirvam a todos. Ainda bem. Há quem atravesse o deserto com a coragem de um super-herói e há quem o faça desfeito em lágrimas. Há quem lhe encontre sentido e há quem não entenda as razões de ter que suportar tal cansaço e provação. Há quem entregue a travessia ao Céu e há quem se entregue ao silêncio da sua própria coragem.


Há desertos impossíveis de atravessar?


Há. Todos nos parecem impossíveis quando ainda não começámos a travessia. Tudo nos parece assustador quando nos é desconhecido. Tudo nos perturba se, dentro de nós, estiver escuro. Ainda assim, e no meio da inevitável solidão de alguns momentos, sobra-nos a memória. Sobra-nos a memória dos que caminham connosco mesmo que não possam caminhar por nós. Sobra-nos uma esperança corajosa. Firme. Que nos diz baixinho que nem tudo se explica mas tudo se poderá (tentar) compreender. E sobram-nos as estrelas. Não há noite maior do que elas.

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Marta Arrais

Cronista

Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)

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