QUANDO O VERÃO CHEGAR AO FIM

Crónicas 24 setembro 2018  •  Tempo de Leitura: 5

Uma canção italiana destes últimos anos tem um desses versos corridos, que cabe inteiro num assobio, mas que colhe com intensidade isso que muitos chamam a síndrome do fim do verão. O verso dedilha-se assim: “Há por certo alguma coisa quando o verão chega ao fim que não consigo bem dizer:/não consigo respirar”. Justa ou injustamente, setembro é alvo de muitas queixas: parece que, de repente, a respiração nos dói; já não acontece tão natural, a plenos pulmões, como pouco antes; sentimo-la confinada, férrea e alheia, como se não nos pertencesse. Colocámos no verão esperanças maiores que o verão — compreendemos agora. Acreditámos que fosse eterna a estação que, de uma hora para outra, vemos demolir. Pensávamos que ali, quem sabe, fosse possível reencontrar tudo o que não temos e fosse possível renascer... Contudo, indiferentes às nossas razões, os dias começam a tornar-se breves, a temperatura declina, uma melancolia teimosa infiltra-se na carne dos nossos regressos e tudo nos custa como se estivéssemos desabituados, como se ninguém nos tivesse informado que a vida — a nossa vida — deve seguir o seu rumo.

 

A história que li recentemente num jornal pode ser tomada como metáfora. Um adolescente de sorriso tímido, em inocente luta com os seus primeiros sonhos, decide escapar de casa ao encontro do mar. Tem apenas a cumplicidade da sua bicicleta e da mochila, que clandestinamente carrega de provisões e água nos dias anteriores. Só que ele vive numa região montanhosa do norte de Itália e o seu desejo é alcançar uma praia do distante sul. Numa terça-feira, pela manhã, sai sem aviso da casa onde vive com o pai, bombeiro, a mãe, professora, e dois irmãos mais novos. O verão está quase no fim, a escola reabre na semana que vem, e ele sente que ainda tem e já não tem muito tempo. Procura não ser visto por nenhum dos 1149 habitantes da sua aldeia, esses mesmos que, ao entardecer, guiados por agentes da proteção civil, com a ajuda de cães e de drones, baterão os bosques procurando vestígios seus e gritando o seu nome. Mas ele não os pode ouvir, porque está longe, mesmo se não tão longe como havia planeado. A sua ideia era apanhar mais à frente um comboio que o levasse até ao litoral de uma ensolarada província a sul. O funcionário que o atende, porém, desfaz em cacos o seu sonho, trazendo-o à realidade: “Mas tu nem tens catorze anos, miúdo, não podes viajar sozinho”. Foi quando o adolescente decidiu reorientar o seu destino. Iria pelo menos até ao Lido de Veneza. Não seria a mesma coisa, claro, mas sempre veria o mar. Pedala com todas as forças, mesmo quando estas lhe faltam. Luta com dores musculares que não conhece, com o cansaço, com a incerteza, mas não desiste. Apeia-se apenas umas horas para dormir, não longe do ruído da estrada, e assim que amanhece coloca-se de novo a caminho. Talvez os automobilistas se perguntassem o que fazia um miúdo de bicicleta naquela estrada cheia de camiões, ameaçado por um tráfico cego. Talvez algum deles tenha alertado, mais adiante, a polícia estradal. A verdade é que esta o deteve e o retirou dali a salvo, a 130 quilómetros de casa. Aos polícias ele contou as peripécias da sua aventura, garantindo não fugir de nenhum litígio: tinha apenas vontade, uma irreprimível vontade de ver o mar.

 

Quando o verão chegar ao fim como nos vai encontrar? Talvez a pedalar interiormente na direção de um horizonte inacessível. Talvez ainda a braços com o que resta da adolescente tentação de pairar suspensos... Contudo, não podemos ignorar o chamamento a deixar que o outono chegue. Isso mesmo, a deixar que o outono chegue, apreendendo-lhe também a força, o sentido e a beleza.

 

[SEMANÁRIO#2394]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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