Beijo na ferida

Crónicas 21 fevereiro 2018  •  Tempo de Leitura: 3

Estamos a caminho de um lugar muito feio. Tenebroso. Profundamente escuro. Estamos feridos e cansados. Não sabemos para onde vamos ou o que vai ser de nós no próximo instante. Os pés avançam sem saber como nem por onde. Dói-nos a vida toda e não a nada em nós que esteja a salvo. Estamos em risco. Talvez não nos seja possível voltar a descobrir um rumo que nos apazigue e sossegue. Perdemos a garra. Nada nos agarra nem nos prende. Tudo nos foge e nos assusta.

 

Respira fundo, agora. Foi só um sonho. Nada do que leste aconteceu. Ou, pelo menos, não te aconteceu a ti. Não agora. Não naquele dia em que a terra não parou, não abrandou. Não pediu perdão. Jesus não teve tempo para pensar se aquilo que estava a viver era um sonho ou um espelho da verdade. Não teve tempo para deixar uma carta aos seus amigos ou para lhes explicar, com detalhe, o pesadelo que estaria prestes a viver. Enquanto os seus ossos quebravam e a sua pele se retorcia numa dor aguda, Jesus não pensou em nada. O seu corpo ficou suspenso numa experiência inacreditável e insuportável para qualquer ser humano. Terá fechado os olhos, por várias vezes, na esperança de regressar ao cheiro do colo da sua mãe. Não regressou. Não houve tréguas nem hipótese de liberdade condicional. Não houve direito a recurso ou a contestação. Houve, sim, um silêncio que queimava tanto como todas as feridas que levava abertas dentro e fora de si.

 

O que aconteceu a Jesus ficou lá atrás. Não é do nosso tempo. Ainda assim, é da nossa responsabilidade. Vamos a caminho do Calvário e Jesus vai à nossa frente. A dar o peito às balas por cada um de nós. A amparar a possibilidade de nos ferirmos com as Suas próprias feridas. Vamos a caminho da Cruz e Jesus vai à nossa frente. A beijar o caminho que os nossos pés vão pisar, para que não nos doam tanto como, um dia, os Seus doeram.

 

Vivemos um tempo de grande consternação porque simpatizamos com o que aconteceu a Jesus. Sabemos que foi errado. Que não é assim que se tratam as pessoas. Que ninguém merece sofrer para sempre. No entanto, reduzimos este tempo a uma pequenez triste e inacreditável. Reduzimos a nossa simpatia pelas feridas de Jesus a um não-comer-um-chocolate; a um não-beber-aquele-cafezinho; a um dar-uma-moeda-para-o-pobrezinho. É muito mais aquilo que Jesus nos pede. Pede-nos a coragem para beijar as Suas feridas. Essas que moram na pele de cada um dos nossos irmãos.

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Marta Arrais

Cronista

Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)

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