O TEMPO COMO DOM

A verdadeira viagem é aquela que dura tanto que já não se sabe porque se veio ou porque se está

 

Quando olhamos para um bocado de terra, apercebemo-nos de várias camadas geológicas e até somos capazes de dizer: esta levou mil anos a sedimentar, esta levou quinhentos, esta dez. Toda a realidade é lavrada pelo incomensurável efeito do tempo: seja a minúscula pedra ou a grandiosa montanha, tudo tem no tempo a sua chave indispensável. Somos trabalhados instante a instante pelos seus instrumentos. E por vezes o tempo passa por nós de forma tão delicada que nem damos por ele, e outras atormenta-nos, assedia-nos, convulsa-nos, com a sua voracidade.

 

Nós somos duração (ou, pelo menos, “duro desejo de durar”, como Paul Éluard defendia). Quer dizer, trazemos em nós a memória e a presença de tempos muito diversos e isso, por muito que nos custe, é um dom. Conhecer-se é tomar consciência desses tempos que coexistem em nós, mesmo no seu contraste. Gostaríamos que a vida fosse mais linear e harmoniosa, não tivesse a marca daquele solavanco ou daquela ferida, não tivesse atravessado aquele estremecimento. É verdade, para bem e para mal, aquilo que Camus escreveu: “O homem é o único animal que se recusa a ser o que é.” Mas em nós coexistirão sempre o breu e a lâmpada, o tesouro e o barro, e a atitude não é mudar aquilo que não podemos mudar, mas perceber que a ambivalência, em certo grau, também é uma respiração que nos pertence. Bem desejaríamos poder travar ou modificar o tempo. Porém, o importante não é ser perfeito: o fundamental é ser inteiro. Trata-se, assim, de integrar, na composição que fazemos da existência, a diversidade, a fragmentação e o contraste. E os pequenos triunfos dão-nos fortaleza para olhar as grandes humilhações, e as dificuldades vividas oferecem-nos sabedoria para olhar de outra maneira para tudo o resto. As experiências de liberdade ampliam a capacidade e a esperança para suportar os momentos em que a perdemos; e as experiências em que nos sentimos aprisionados consolidam a resistência, a força e até o sentido de humor para vivermos os tempos de liberdade. Há, portanto, que afastar a tentação do cinismo e aceitar que somos feitos efetivamente destes materiais tão diferentes e que tudo isso é matéria de vida e de dádiva. Escreve Rainer Maria Rilke nesse mapa indispensável que são as “Cartas a um Jovem Poeta”: “o tempo não é uma medida, um ano não conta, dez anos não representam nada, ser pessoa não significa contar, não se trata de contar o tempo: trata-se sim de crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste serena.”
 
Normalmente, quando vamos de um lado para o outro conhecemos o motivo. Mas — temos de reconhecê-lo — uma viagem assim é demasiado curta. A viagem que se faz sabendo os motivos não é a viagem. A verdadeira viagem é aquela que dura tanto que já não se sabe porque se veio ou porque se está. As perguntas sobre o que fazemos já não interessam. Estamos, ponto final. Viemos. Não é o saber ou a utilidade que definem a vida, mas o próprio ser, a expressão profunda de si.

 

Por exemplo: olhamos para um jardim, gostamos, não gostamos, intervimos, cortamos, cerceamos e, de repente, temos um jardim obcecado por figuras geométricas, recortado pela ânsia de alcançar formas reconhecíveis ou perfeitas. Contudo, é bom saber que o nosso desejo de arrumação pode ser enganador, porque a vida é viva, e nada se sobrepõe a essa verdade. Creio, por isso, que temos sim de desejar os nossos canteiros bem ordenados e floridos, e neles a maturar a vida que controlamos. Mas não podemos deixar de desejar, e de desejar ardentemente, que flores selvagens, flores de que não conhecemos o nome, venham também florir à nossa porta.

 

[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2289 | 10/09/16]

José Tolentino Mendonça

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