Bem-aventuradas os que arriscam fazer um bom uso das crises

Atravessar etapas de crise não é necessariamente mau: permite-nos um olhar a que ainda não havíamos chegado, permite-nos escutar não apenas a vida aparente, mas a insatisfação, a sede de verdade e de sentido, e passar a assumir uma condição mais ativa e assumida. Mudar não significa tornar-se outro, mas fazer uma experiência mais autêntica de si. No fundo, só mudamos quando nos encontramos. Não nos escutarmos, até ao fim, isso sim é desperdiçar uma preciosa ocasião para aceder àquela profundidade que pode devolver sentido à existência. Talvez precisemos descobrir que, no decurso do nosso caminho, os grandes ciclos de interrogação, a intensificação da procura, os tempos de impasse, as experiências de crise podem representar verdadeiras oportunidades. Quanto mais conscientes dos nossos entraves, limites e contradições, mas também das nossas forças e capacidades, tanto mais podemos investir criativamente no sentido da nossa identidade. Isso implica uma mudança de ponto de vista sobre nós próprios e o mundo, e advém daí naturalmente uma instabilidade face a modelos que se tinham por adquiridos. Os partos indolores são uma mistificação. Quem tem de nascer, prepare-se para esbracejar.

 

Mas há um momento em que aprendemos que vale mais  prestar atenção àquilo que em nós está a germinar, num lento e invisível (e inaudível) processo de gestação, do que àquilo que perdemos. 

 

Em 1999, uma tempestade varreu drasticamente a Europa. No rastro de desolação, estima-se que terão ficado tombadas cerca de trezentos milhões de árvores. Em França, nas semanas que se seguiram, os gabinetes governamentais elaboraram aprofundados programas de reflorestação, procurando ao mesmo tempo tirar partido do acidente, pois a floresta seria por eles reconstruída com uma racionalidade mais adequada. Mas quando passaram ao terreno, os engenheiros florestais aperceberam-se de que a floresta tinha começado a regeneração mais rapidamente do que supunham. E inclusive, contrariando os planos técnicos, a floresta havia encontrado configurações novas, muito mais vantajosas do que aquelas oficiadas pela abstrata geometria dos gabinetes.

 

[Fotografia de Miguel Moniz - Report | Texto: Tolentino Mendonça, "Observatório da Cultura" (novembro 2013)]

José Tolentino Mendonça

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