"Mas ele [Francisco] parece-me comprometido para que as pessoas sejam sinceras, honestas, transparentes". Entrevista com o Dalai Lama

Nos dias 14 e 15 de junho, ele vai ensinar em Livorno, diante de milhares de pessoas. O sol está quente, o céu azul, estudiosos e monges se movem pela grande casa de pedra e pelos pinheiros. Verde pela Toscana, amarelo pela sabedoria, vermelho pela compaixão. A máxima autoridade do budismo tibetano, 78 anos, entra, sorri, se acomoda em uma poltrona, entre frutas e buquês de flores.

 

Eis a entrevista.
Santidade, é verdade que o senhor se levanta às 3h da manhã?
Sim, sempre. Quando eu era jovem, não: perto das 5h, 6h. Mas agora vou dormir muito cedo, às 6h30, 7h da noite.
 
O senhor recém-esteve na Letônia, na Noruega, na Alemanha, em Bombaim e agora está aqui na Itália. Depois irá para Ladakh, nas cadeias montanhosas de Karakoram e do Himalaia. Não sofre de jet lag, como todos nós?
Não! Essa é uma vantagem que eu tenho. Entre a Índia e os EUA, na costa leste, há nove horas de diferença. Mas para o sono, nenhum problema. Eu chego, ajusto o relógio, durmo, acordo às 3h – no problem. Os movimentos intestinais, esses não, não funcionam assim. Eles fazem o que querem. Eu me acordo às 3h, tomo café da manhã às 5h30. Depois, vou ao banheiro: muito difícil, apesar do compromisso (ri com vontade).
 
Problemas de humanidade, também estes, Santidade.
A mente está pronta, mas às vezes o corpo não acompanha!
 
Eu abro o seu perfil no Twitter, nove milhões de seguidores. O que eu li poderia estar tranquilamente no perfil do Papa Francisco. O budismo e a Igreja Católica têm tanto assim em comum?
Muitas coisas. Todas as maiores religiões mundiais – cristandade, Islã, judaísmo, hinduísmo, jainismo, budismo – levam a mesma mensagem, e é uma mensagem de amor. E reconhecem que o que destrói o amor é a raiva. Assim, as religiões nos sugerem a prática da tolerância e do perdão. A cobiça também obstaculiza a prática do amor. A autodisciplina não deve ser uma regra imposta, mas sim uma decisão individual com base em razões válidas. Se você é um praticante religioso, você acredita em Deus ou na lei da causalidade: por isso, não prejudica os outros. As maiores tradições religiosas mundiais levam a mesma mensagem. Monges e freiras nos mosteiros e nos conventos católicos praticam a simplicidade e dedicam o tempo à oração – budismo e cristianismo também têm isso em comum.
 
O Papa Francisco mudou o modo pelo qual o cristianismo é percebido no mundo?
Precisamente, não sei. Mas ele me parece comprometido para que as pessoas sejam sinceras, honestas, transparentes. Chamou-me a atenção como ele demitiu aquele bispo alemão que vivia na riqueza. "Como pastor da Igreja, você ensina a simplicidade e vive no luxo?" O papa considerou isso uma contradição, uma hipocrisia. Pregar uma coisa, fazer outra. Esse papa leva adiante os ensinamentos com vontade e transparência. Eu o admiro.
 
E Bento XVI?
O papa alemão recordou que fé e razão devem andar juntas. Eu considero essa uma grande afirmação. A fé sem razão não é estável. A ciência se baseia na razão, a religião na fé. Eu não tenho certeza se a ciência sem a religião traz benefícios para a humanidade. Pensemos nas armas nucleares: cientificamente, um sucesso, mas sem princípios morais. Eu também admirava o papa polonês. Ele foi significativo para mim. Fez muito para promover a harmonia religiosa. Lembro ainda o encontro de Assis em 1984. Maravilhoso.
 
O senhor deixou o Tibete em 1959, logo depois da invasão chinesa. Pensa em poder voltar um dia, ao menos para uma visita?
Sim, é claro! Mantivemos essa esperança por 55 anos. Desde o início, o lema foi: espera o melhor, prepare-se para o pior. A esperança traz determinação. Qualquer pessoa, se perde a esperança, fracassa. Não importa quais sejam as dificuldades, a mudança é sempre possível. Contanto que você mesmo seja honesto e sincero. Hoje, a luta tibetana é entre o poder da verdade e o poder do fuzil. Acreditamos na verdade. O poder da verdade permanece sempre forte. O poder do fuzil parece decisivo, mas não permanecerá para sempre.
 
A China vai mudar?
Historicamente, a China é uma nação budista. Você esteve lá, me disse. Deve ter visto quantos templos. Embora aRevolução Cultural tenha destruído as antigas tradições, hoje o budismo e as outras fés de hoje estão ressurgindo velozmente. Há 400 milhões de budistas na China. Muitos deles mostram um interesse genuíno e respeito pela tradição budista tibetana. E estão preocupados com o Tibete. Muitos líderes chineses, muitos membros do partido, em nível cerebral, acreditam no sistema totalitário, porque com eles têm benefícios e têm oportunidades para ganhar dinheiro (risos). Mas nos seus corações eles são budistas. As coisas estão mudando, portanto. Não no Tibete, onde o espírito continua forte.
 
O senhor esteve na China quando tinha 20 anos.
Ah, sim! Eu amo os chineses e a cultura chinesa. Gente culta, trabalhadora. Comida fantástica. O país mais populoso. Uma economia importante. A China pode assumir um papel construtivo em escala global. Mas respeito e confiança no resto do mundo são essenciais. Hoje, a China às vezes é fonte de medo. Tenho muitos amigos na Índia e no Japão: por trás dos seus sorrisos, vejo desconfiança e medo. Isso é contra o interesse da China, que deveria mudar. Wen Jiabao[ex-primeiro-ministro chinês] falou da necessidade de reformas, de democracia de marca ocidental. Agora, Xi Jinping[secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Presidente da República Popular da China] parece realista: diz buscar a verdade nos fatos.
 
Gostaria de encontrá-lo?
Isso depende dele! (risos)
 
O senhor nasceu no dia 16 de julho de 1935, em uma família de agricultores em um pequeno vilarejo em Amdo, no Tibete norte-oriental, e aos dois anos de idade foi reconhecido como a reencarnação do seu antecessor. Quem será o 15º Dalai Lama? Poderia ser uma mulher?
Certamente, e eu digo isso há anos. Se as circunstâncias forem justas, uma mulher Dalai Lama poderia ser mais útil para o serviço ao Buda Dharma. Mas se isso acontecer, essa mulher deve ser muito, muito atraente, com um rosto bonito... Uma Dalai Lama feminina com um rosto feio não ajudaria muito (risos)...
 
A instituição do Dalai Lama resistirá?
Se a maioria das pessoas considerar que essa antiga instituição não é mais relevante, então que seja interrompida, no problem. O budismo tibetano é mais antigo do que a instituição do Dalai Lama e permanecerá. O governo chinês deve lembrar que o Dalai Lama não é mais, há anos, politicamente relevante. Eu, por exemplo, já não tenho nenhuma responsabilidade nessa matéria. Parece-me que Pequim está mais ansiosa do que eu sobre o próximo Dalai Lama! Eu não estou preocupado (risos).
 
Religião e moda. O budismo é uma religião amada pelo ateísmo ocidental e por muitas pessoas laicas. Segue forte na mídia, povoa Hollywood, ao contrário do cristianismo. As conversões das estrelas (Richard Gere, Sharon Stone, Sting, Patti Smith...) são incontáveis. Mas o senhor disse no passado: as pessoas deveriam permanecer na religião da sua tradição.
Quando me convidaram para falar sobre esse tema, eu logo deixei claro: é mais seguro e é melhor permanecer na própria fé tradicional. Mudar de fé não é fácil. Às vezes, cria dificuldades na mente. Notei como, depois de ter mudado de fé, chega uma grande confusão aqui [apontando para a cabeça]. Acreditamos que, enquanto alguém não nos peça para explicar o budismo, não devemos fazê-lo. Não temos missionários; ao mesmo tempo, há liberdade religiosa. O Tibete é 99% budista, mas também há islâmicos e cristãos.
 
Portanto, o senhor não incentiva a conversão?
Se alguém está realmente atraído pelo budismo, eu digo: "Pense nisso seriamente, não é uma moda". Se, depois, essa pessoa chegar à conclusão de que o budismo é feito para ele ou para ela, então é livre para fazê-lo. Eu acrescentaria: nunca desenvolva, depois, atitudes negativas em relação à própria religião anterior. Isso é muito importante.
 
Um dos grandes problemas italianos, pouco compreendidos pela Europa, é a migração em massa do sul. Da África, da Síria. O que se pode fazer? Fechar todas as portas é atroz, abri-las é impraticável.
(Sorri, pensa, fala em tibetano com os assistentes). Uma resposta como "sim" ou "não" é impossível, as coisas são complicadas. Devemos tratá-las de forma realista. O desenvolvimento da economia e da liberdade africanas são fundamentais. O mundo tem uma responsabilidade moral: deve ajudar. Se no país vizinho as pessoas morrem de fome e são mortas, torna-se difícil dizer: "Não, não entrem". Mas, de novo, se todos chegassem ao seu país, vocês acabariam tendo dificuldades. Então, é preciso ajudar e dizer honestamente até onde se pode ajudar.
 
Como o senhor se mantém informado?
BBC Radio. Televisão? Faz três anos que não a ligo. Internet? Não sei como funciona (move os dedos aproximando-os do meu computador). Anos atrás, o presidente George W. Bush me telefonou enquanto eu estava no hospital na Índia. Quando o meu secretário me passou o telefone, em vez de colocá-lo ao ouvido, coloquei na frente da boca! (risos, imitando o movimento).
 
Qual é o erro dos meios de comunicação que mais lhe desagrada?
A insistência nas notícias negativas. Homicídios, estupros, abusos sexuais, corrupção, violência, também na BBC, nunca uma coisa positiva: no mundo, não existe só isso. Se aqueles que cometem essas ações fossem a maioria, o mundo estaria acabado. A humanidade em geral se ocupa com crianças e idosos: não faz coisas ruins. Se fosse o contrário, rezaria a Deus ou a Buda: "Por favor, elimine a humanidade".
 
Existe uma cidade no mundo à qual o senhor volta de bom grado?
São um pouco todas iguais, as cidades modernas: ruas e muitos edifícios altos. Não são necessariamente bonitas. Gosto dos lugares menores, como este.
 
Fora da Índia, onde o senhor mora, que tipo de comida prefere?
A comida italiana! Os espaguetes, eu amo. Tenho problemas no Japão: a comida é ótima, mas é pouca. Lembro-me de uma delegação estrangeira que, depois de um banquete oficial, perguntou: onde fica o restaurante? Para mim, a quantidade é importante. Eu não janto como monge budista: devo comer no café da manhã e no almoço.
 
Vai assistir os jogos da Copa do Mundo no Brasil? E por quem vai torcer?
Eu não assisto futebol, não estou interessado. Mas, quando eu era jovem em Lhasa, nós, jovens monges, jogávamos futebol, nós gostávamos. Não conhecíamos as regras. O desafio era mandar a bola o mais longe possível. Posso acrescentar uma coisa?
 
Bem, o senhor é o Dalai Lama.
Assistir o esporte traz uma satisfação sensorial. Assim também é com a música. Mas são coisas passageiras. A fé, a compaixão e o pensamento, ao contrário, não partem dos sentidos: dão tranquilidade interior. Eu me acordo às 2h e penso em mim mesmo, no prazer, na consciência. Talvez na física quântica. As emoções baseadas nos conhecimentos superficiais pode ser destrutivas. No entanto, o mundo moderno se baseia nisto: prazer sensorial. Muito superficial. Você é católico. Quem crê, deve ir ao fundo. E se o cérebro italiano, como você escreve nos seus livros, é diferente dos outros, isso eu não sei! (risos).

 

[iMissio com IHU. A reportagem é de Beppe Severgnini, publicada no jornal Corriere della Sera, 13-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.]
[photo credit: abhikrama via photopin cc]

iMissio

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail