Quantos dias bonitos cabem num dia feio?!

Trazemos, no currículo da alma, uma imensidão de dias feios. Ao colo destes, como quem espera a vida toda para nascer outra vez, cabem os dias bonitos. Dentro das palmas das mãos flutuam os mapas do que vivemos, do que vimos e do que tornámos verdadeiro. Debaixo da pele dos pés, vivem os contornos dos passos que soubemos dar e avançar. Somos completos com tudo o que nos deixou a boca a saber a amargo e com tudo o que nos temperou a alma de açúcar e de outras doçuras que não cabem nas palavras. Somos feitos de dias feios e de dias bonitos. Por termos uma memória viciada e quase egoísta, somos capazes de tricotar todos os pormenores de um dia que nos mostrou cara feia mas somos pouco capazes de trazer de volta o que nos foi dado num dia bonito. Os dias bonitos bastam-se e bastam-nos. Com os dias feios, a conversa recua um pouco. Enquanto vivemos, contamos com a esperteza de quem só quer encontrar coisas bonitas. Momentos bons. Pessoas boas. E enquanto vivemos, a vida faz-nos contar com a astúcia de quem também tem que aguentar os dias maus. Os momentos péssimos. As pessoas feias de coração. No caminho que fazemos, aprendemos que os dias bonitos podem não rimar com a Primavera e que os dias feios não têm, necessariamente, que ser órfãos de sol. A paisagem dos dias tem pouco que ver com as estações do ano. Mas talvez tenha muito da paisagem que decidimos ser a cada dia que passa. Falar dos dias feios é lembrar que as feridas ardem sempre muito antes de darem lugar ao tempo da cura. Falar dos dias feios traz de volta o que doeu, o que não conseguimos, o que não foi nosso, o que não rimou com o nosso coração. Ninguém gosta de dias feios porque nos parece que a alegria vem sempre de mãos dadas com a luz do sol e do céu muito azul. No entanto, são os dias feios que nos preparam para merecer as alegrias que o futuro há-de trazer. São esses dias magros de beleza que nos ensinam a sorrir às coisas pequenas e simples. Por sabermos que, num dia mais feio, podemos muito bem perder-lhes o rasto. São os dias tortos que nos endireitam o coração. São os dias feios que nos fazem pensar e agradecer. Não nos deixemos convencer que os dias escuros duram mais que os outros. Ainda que nos sigam e se sigam uns aos outros. Cabem muitos dias bonitos em cada dia que nos nasce feio. É uma questão de perspectiva. A vida pode ser feia durante tempos sem fim mas é tão bonita, não é?!

Marta Arrais

Cronista

Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)

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